(Ou: como escrever sobre si mesmo sem parecer um colapso em vias de acontecer— e falhar gloriosamente no processo )
I. Pré-condições para considerações Controladas.
Antes de mais nada, é importante reconhecer que falar de si mesmo é quase um esporte radical, um salto mortal em cima de um campo minado da autoimagem¹, onde o público é uma mistura de você mesmo (uma versão menos fotogênica e mais bem iluminada) e qualquer leitor disposto a encarar um epigrama apropriadanente místico que você oferece. Porque aqui está o problema: o “eu” não é uma entidade estática, nem um ponto fixo no mapa da identidade. É mais como um caleidoscópio pré-socrático com espelhos que mudam de lugar a cada olhar, um efeito de vídeo mal editado que insiste em repetir cenas antigas mas com filtros diferentes (e, claro, algum ruído de fundo que você tenta ignorar).²
Portanto, se eu disser “sou um primata" pós-moderno com circuitos emocionais defasados”, não espere uma definição clara — senta porque lá vem um espelho quebrado onde cada pedaço reflete uma fração do todo, mas nenhuma delas mostra a imagem completa. É onde eu argumento contra mim mesmo e tento criar um mundo no qual não fica claro quem está certo e quem está errado. E sim, estou plenamente consciente do quanto isso pode ser pendante. O que, talvez, seja a forma mais honesta de me aproximar de mim mesmo. Se Jacques Derrida pudesse me interromper agora — e, sejamos francos, ele interromperia —, diria que toda vez que escrevo “eu”, na verdade convoco uma ausência. Não há presença plena no pronome. O sujeito é um rastro, uma dobra de linguagem. E quanto mais tento me capturar, mais escapo pela tangente do discurso. ³
¹ Obsessão por metáforas: salto mortal duplo aqui serve para ilustrar o quão arriscado pode ser tentar se apresentar no século 21, onde o esgotanento do conteúdo pessoal é inversamente proporcional à sinceridade percebida. Isso já foi estudado, em algum momento da nossa história, embora os resultados sejam inconclusivos, porque todo estudo sobre o “eu” é meio que uma farsa, dado que o “eu” muda conforme você olha para ele.
² Curiosidade interessante (para quem gosta de perder tempo): neurologistas afirmam que o cérebro não é exatamente um “computador” mas um sistema altamente dinâmico, com conexões que mudam constantemente, o que significa que sua “personalidade” é um bug, uma feature, e uma piada interna que você mesmo não entende.
³ Se isso parece deprimente, espere até chegar na seção do corredor.
II. O Outro Eu (Manual de Convivência com um Duplo Improvável)
(Ou: aquela criatura esquisita que habita sua mente e que parece um crítico literário sarcástico, sempre pronto para destruir seus planos de dominar o mundo com suas miçangas)
Imagine que dentro da sua cabeça não mora apenas uma pessoa, mas um apartamento inteiro com inquilinos distintos, cada uma com um diploma em retórica e um histórico clínico não resolvido. Entre eles, existe esse outro “eu”, uma entidade que ao mesmo tempo te conhece profundamente e te vê como um estranho esquisito tentando montar um móvel do IKEA sem manual. Ele (ou ela? Talvez um “isso”) aparece nos momentos mais inoportunos para dizer: “você realmente quer escrever isso?”, ou “essa frase é tão pretensiosa que dói”, ou simplesmente “vai dormir, cara, é 3h da manhã e ninguém precisa ler isso”.⁴ E o mais bizarro é que esse duplo às vezes escreve bilhetes — ou pensamentos — que você encontra mais tarde no seu “arquivo mental de coisas embaraçosas” (aquele lugar onde você guarda as piores versões de si mesmo para revisitar em noites insones)
⁴ Nota para futuros psicólogos: o diálogo interno pode ser tanto um instrumento de autossabotagem quanto o único recurso contra a dilaceração da consciência. Tem gente que fala com esse “outro eu” em voz alta. Eu prefiro que ele fique calado, sossegado, mas ele não respeita a minha preferência, o que gera conflitos de convivência mais ou menos como dividir apartamento com um Poltergeist.
Além disso, esse outro eu às vezes desenvolve um humor tão seco e ácido que poderia ganhar prêmios em festivais de stand-up. Ele sabe dos seus gatilhos, os pequenos fracassos que você tenta esconder do mundo — e, claro, o mais importante: sabe que você sabe que ele sabe, o que cria uma espécie de fogo no parquinho que é ao mesmo tempo necessário e cômico.⁵
⁵ Teoria da conspiração fenomenológica:
esse outro eu é a versão da sua consciência que lê seus escritos antigos e riu de você por horas seguidas, antes de decidir que talvez mereça um pouco de compaixão — mas só um pouco. De qualquer forma, a utilização da expressão “diálogo interno” parece mais precisa do que “monólogo interno”, uma vez que a primeira já aponta para a divisão do sujeito. Um diálogo também no sentido de haver emissor e receptor e de se ter um endereçamento, mesmo que isso se dê na tecitura psíquica do próprio sujeito. Nesse ponto, vemos os efeitos do “anzol da linguagem”, invadindo nosso corpo e produzindo costuras.
III. Topografia do Absurdo: Um Guia para o Viajante Desatento
Se você acha que sua mente é uma linha reta com começo, meio e fim, parabéns, você não mora dentro do meu cérebro. Aqui, a topografia é um terreno acidentado cheio de crateras de desconfiança, montanhas de procrastinação e florestas onde se perde qualquer noção de tempo e espaço. Eu gosto de pensar que minha rotina é um exercício de equilíbrio entre idiotice performática e hedonismo de leve — o que significa que, quando me perguntam “tudo bem?”, minha resposta padrão (que é “crédito”) é um código secreto que, se decifrado, revela: “não faço ideia do que está acontecendo, mas obrigado por perguntar”.⁶
⁶ Ponto extra: “crédito” aqui é um neologismo pessoal para expressar uma combinação meio confusa de “ok, estou mal, mas não quero admitir”, “não quero que você pergunte de novo”, e “me deixe em paz”. Se quiser tentar usar, cuidado, pode causar confusão social severa.
Além disso, essa topografia absurda é atravessada por estradas feitas de dúvidas recicladas e uma pitada de cinismo que serve como protetor solar contra expectativas sociais. Imagine uma zona de conforto que é um parque temático emocional, mas com as atrações principais sendo montanhas-russas de culpa e rios artificiais de alívio cínico — com direito a filas intermináveis e vendedores ambulantes oferecendo promessas vazias.⁷
⁷ Curiosidade filosófica: O absurdo não é um estado transitório, mas a matéria-prima fundamental da experiência humana, e tentar fugir dele é como tentar nadar contra a maré do seu próprio pensamento Ou, como diria Camus, você pode escolher imaginar o absurdo como um problema, ou como um parque temático — eu fico com o parque.
IV. O Corredor (Apontamentos para um Inventário Imaginário)
(Ou: aquele lugar proibido, cheio de móveis quebrados, sombras e promessas não cumpridas — onde moram os fantasmas que você prefere ignorar)
Existe uma ala na arquitetura interna onde se acumulam os resíduos da consciência. Chamo de corredor, por falta de termo melhor. É mais uma zona de armazenamento emocional mal gerenciada. Dito isso, há um corredor na minha mente — não no sentido físico, claro, mas num sentido que escapa a qualquer mapa cognitivo clássico. É um corredor escuro, com cheiro de mofo emocional e paredes que reverberam ecos de todas as versões tristes de mim mesmo. Ali, guardo brinquedos quebrados, latas vazias, promessas desfeitas e um arsenal de medicamentos com nomes impronunciáveis, que prometem alívio e entregam efeitos colaterais que são histórias de terror por si só.⁸
⁸ Nota para os fãs da Carrie, a Estranha: esses remédios são o tipo de coisa que parece ter sido nomeada por um bot tentando parecer humano. Se você já tentou pronunciar “quetiapina” numa roda de amigos, sabe do que falo.
A luz desse corredor vem de um abajur com detalhes vitorianos, que projeta sombras indecentes nas paredes — tipo holofote num palco onde ninguém quer atuar, mas todo mundo está preso. E eu fico ali, estirado no chão frio, encarando o abajur e as formas distorcidas das memórias e sentimentos que tento enterrar, sabendo que eles sempre voltam.⁹
⁹ Pensamento maluco do dia: e se o corredor for o lugar onde o tempo não passa, porque ali mora a eternidade dos momentos que você quer esquecer? Isso explicaria por que, às vezes, sentir saudade é como ser assombrado por fantasmas que você mesmo alimentou.
V. A Madrugada é um Bicho com Relógio Quebrado
(Ou: quando o tempo vira uma espécie de liquefação temporal, onde os pensamentos escorregam como óleo, e você é obrigado a encarar a si mesmo sem intervalos comerciais)
A madrugada não é um momento comum — é um espaço-tempo diferente, um tipo de buraco negro psicológico onde o relógio quebra e o tempo vira uma espiral interminável. As horas parecem se repetir num looping infinito, e os pensamentos pipocam como fogos de artifício em câmera lenta, brilhando intensamente antes de desaparecer na neblina da memória.¹⁰
¹⁰ Nota para insônia: esse estado mental é o playground oficial dos poetas malucos, dos paranoicos anônimos, dos sonhadores frustrados e dos algoritmos que decidem que é hora de bombardear seu celular com anúncios de coisas que você pesquisou há seis meses (mas jurou que nunca compraria). Se quiser entrar nesse clube, leve seu próprio travesseiro e prepare-se para noites sem fim.
Falar consigo mesmo nesse horário é mais que uma necessidade — é um imperativo categórico da condição existencialista. O silêncio é um monstro que devora a sanidade, e a única forma de sobreviver é continuar falando, mesmo que seja para um interlocutor imaginário que você sabe que não tem respostas.¹¹ Talvez essa incapacidade de desligar o diálogo interno seja a verdadeira problemática do “eu”: a consciência como um bicho inquieto, que não consegue se calar e que, por isso, nunca descansa.
¹¹ Reflexão final: se a consciência fosse um interruptor, provavelmente estaria quebrado. E se você desligasse a consciência, quem estaria ali para testemunhar o silêncio? Spoiler: ninguém. Talvez por isso a madrugada seja tão assustadora — não pela escuridão, mas porque ela revela que a verdadeira solidão é estar preso dentro da própria cabeça, sem pausa e sem replay.
