sábado, 19 de abril de 2025

você sabe o que está acontecendo aqui


O garoto, sempre em silêncio, raramente se movia, mas sua presença era mais palpável do que a de qualquer coisa ao redor. Ele não ocupava o lugar como os outros — ele infiltrava-se nele. Seu corpo magro parecia ser apenas uma fachada para algo imensurável. Não havia idade em seus traços. Ele poderia ter cinco ou cinquenta anos. E seus olhos… bem, seus olhos não estavam ali.

Ele observava tudo, mas não dizia nada. E, por algum motivo que eu não compreendia, sentia que ele me via não com os olhos, mas com a mente. Não como quem pensa, mas como quem respira. Pensamentos intrusivos? Uma mente imensa, silenciosa e estilhaçada, conectada à minha por vias que nenhum teorema quântico seria capaz de nomear.

 Às vezes, sua presença dentro de mim era tão forte que eu não sabia mais se os pensamentos eram meus. Por meio de alusões entrecortadas, ele era a respiração entre uma ideia e outra — uma inquietação sem origem, que me atravessava como uma lâmina de gelo. Eu pensava em coisas que não entendia. Coisas que ninguém deveria pensar.

E então havia Mawilda. Mawilda falava.

Oh, como ela falava. Cada frase era uma onda lenta e pesada, arrastando em seu fluxo séculos de significados esquecidos. Havia em sua fala um ritmo inatingível — como se ela estivesse traduzindo uma escritura antiga que não pertencia a este plano. Quando ela falava, o tempo parecia hesitar. Suas palavras não eram frases, mas mantras. E, se eu não tomasse cuidado, elas abririam portas dentro de mim.

O vestido caía-lhe até os pés, feito de um tecido verde áspero, semelhante ao morim tingido, mas com um brilho estranho — como se tivesse sido entrelaçado com fibras vegetais.  Havia algo de orgânico naquele tecido, como se respirasse com ela. A cintura, mais alta que o comum, parecia marcar não apenas a forma do corpo, mas um ponto vital — onde algo se concentra ou desperta. Um cinto de palha lisa a envolvia com firmeza, e dele partia uma faixa larga, cruzando em diagonal o seio e o ombro direitos, descendo pelas costas com a precisão de um gesto ritualístico. Havia nesse traçado uma gravidade mística, como se cada linha vestisse não apenas a carne, mas um sentido oculto, uma pertença a algo maior.

Seus olhos buscavam em mim algo que nem mesmo eu sabia que possuía. Não era atenção — era reconhecimento. Pertencimento. Ela me olhava como quem observa uma cicatriz hebraica num mapa esquecido, esperando que eu lembrasse do que estava enterrado ali. Às vezes, sentia que ela falava não para mim, mas por mim através de mim, como se minha boca fosse apenas um extensão do que se arrastava na escuridão.

“Você entende o que está acontecendo aqui?”, ela me perguntou certa vez, com aquele sorriso enigmático de quem não só conhece os segredos do universo, mas já os abandonou por pura indiferença.

Eu não sabia. Não, eu não sabia.

Mas, à medida que o tempo se desfiava em fragmentos dissonantes, a presença deles se tornava insuportável. Eu não podia mais distinguir onde terminava minha mente e onde começava a deles — se é que havia essa diferença. Em certos momentos, eu sentia como se meu corpo fosse apenas uma interface, uma casca frágil entre dimensões em colisão. Uma pele fina demais para conter aquilo que a tocava por dentro.

Via-os em toda parte. No vidro, no canto do quarto, nas dobras do lençol. Mas sempre à margem do meu campo de visão. Quando olhava diretamente, nada — como se fossem sombras de coisas que não pertenciam ao visível. E, no entanto, sua influência me moldava. Sentia-a nos gestos mais simples, nas palavras que escolhia, nas decisões que não sabia se eram realmente minhas.

“Você entende o que está acontecendo aqui?”, perguntou Mawilda novamente, com a voz de um segredo ancestral, as feições convulsionadas, mostrando as lágrimas escorrendo, em grossos fios dos rasgados e assaz olhos que se arrastava pelo fase como um veneno lento.

Comecei a perceber símbolos. Apareciam nas bordas dos espelhos, riscados nas mesas, gravados nos meus sonhos: círculos incompletos, espirais quebradas, linhas que desafiavam a lógica. Sentia que os reconhecia, como se fossem fragmentos de uma língua esquecida, anterior à linguagem. Como se eu fosse apenas um eco distante de algo que jamais deveria ser compreendido.

Mawilda me entregou um papel com um desses símbolos. Não explicou. Apenas me olhou, e naquele olhar havia algo definitivo: você sabe o que está acontecendo aqui

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