quarta-feira, 22 de novembro de 2023

Lacan: do outro lado não tem ninguém



O conceito de sujeito, como qualquer estudante de ciências humanas deveria saber, não é uma noção unívoca, ou seja, comporta uma diversidade de interpretações e definições. No campo filosófico, o termo sujeito é elevado ao estatuto de conceito a partir do pensamento de René Descartes. Como foge aos nossos propósitos, analisar o conceito de sujeito em Descartes em todas as suas particularidades, serei bastante sucinto ao falar dele, mesmo correndo o risco de simplificá-lo demasiadamente.

Assim, o sujeito cartesiano poderia ser identificado ao eu, realidade supostamente irredutível, pois, segundo Descartes, sua existência não poderia ser posta em dúvida, já que o próprio ato de duvidar pressuporia um sujeito. No domínio da linguística, diz-se que sujeito é o elemento de uma sentença que sofre a predicação. Em outras palavras, o sujeito é aquilo ao qual atribuímos ou negamos determinadas características.

Observe que tanto do ponto de vista cartesiano quanto linguístico, o termo sujeito é um lugar vazio. Com efeito, para Descartes, tudo o que se diz a respeito de alguém pode ser colocado em dúvida pelo próprio sujeito. Qualquer atributo que sobre ele recaia não pode lhe servir como representante último, pois o próprio sujeito possuiria a capacidade de colocar o mérito do qualificativo em xeque e, se necessário, descartá-lo. Nesse sentido, o sujeito constitui-se em um lugar a priori vazio. Ocorre o mesmo com a noção linguística de sujeito: a palavra “Pedro” considerada isoladamente não possui sentido algum. Só adquire significação quando atribuímos a ela algum predicado, como na sentença “Pedro é um aluno.”. Portanto, o sujeito “Pedro” considerado em si mesmo é um lugar inicialmente vazio a ser preenchido com predicados.

Signo, significante, significado

Ora, o que são predicados senão palavras, significantes? A noção de significante utilizada por Lacan é proveniente de Ferdinand de Saussure, um linguista que propôs uma visão estruturalista da linguagem. Para Saussurre, a linguagem seria formada por elementos chamados signos. Esses, por sua vez, seriam compostos de duas dimensões, unidas arbitrariamente, ou seja, em função do acaso, a saber: o significante e o significado. O significante seria a parcela material do signo linguístico (o som da palavra, por exemplo). Já o significado seria o conceito, o sentido, a ideia associada ao significante. A teoria da linguagem de Saussure é estrutural porque pressupõe que o valor de um determinado signo não é dado a priori, mas depende da relação com os demais signos do sistema linguístico.

Lacan, guiado pela experiência com as formações do inconsciente (sonhos, lapsos, chistes, atos-falhos, etc.) reinventa a proposta original de Saussure, argumentando que a linguagem seria constituída essencialmente de significantes e não de signos e que o significado não teria – ainda que arbitrariamente produzida – uma relação fixa com o significante. Para Lacan, a experiência psicanalítica teria demonstrado que o significado é extremamente volátil, evanescente, como um fluido que desliza ao longo da cadeia de significantes. Nesse sentido, a noção de signo deveria ser relativizada, já que uma relação mais ou menos fixa entre significante e significado estaria restrita a um dado contexto. Por outro lado, na linguagem como um todo, isto é, no lugar do Outro, só existiriam significantes. Aliás, Lacan define o Outro precisamente como “tesouro dos significantes”.

Vejamos agora como Lacan articula a noção de sujeito à de significante. Vimos que o sujeito é na verdade, tanto do ponto de vista cartesiano quanto linguístico, um lugar a priori vazio. O sujeito, portanto, não possui uma substância. Sua caracterização ou significado estaria na dependência da predicação. Essa, por sua vez, é constituída de significantes, os quais, do ponto de vista lacaniano, são os próprios artífices do significado a partir das relações que estabelecem com outros significantes na cadeia linguística.

Vale lembrar que a noção de sujeito, pelo menos no caso específico da experiência psicanalítica, serve para designar a pessoa ou o indivíduo, de modo que cada um de nós pode dizer: “Eu sou um sujeito”. Então vem Lacan e diz que o sujeito é aquilo que um significante representa para outro significante. Assim, se fôssemos reformular a frase original substituindo o termo “sujeito” pela definição que Lacan dá a ele, teríamos “Eu sou aquilo que um significante representa para outro significante”. Dessa frase podemos depreender algumas conclusões: a primeira é a de que, do ponto de vista lacaniano, nós não somos aquilo que acreditamos ser e a segunda é a de que a capacidade de sermos diferentes do que somos não depende de nós, mas do Outro. Afinal, é no lugar do Outro, para Lacan, que se desenrola a cadeia significante que nos determina. É lá que se encontram os significantes que nos representam para outros significantes.

Dito de modo mais simples e direto, o que Lacan pretende expressar com sua fórmula é a tese de que nós, nossos desejos, nossos projetos, nossas concepções sobre a vida, nossos amores, enfim, tudo o que decorre de nós estaria na dependência do discurso do Outro. Não foi por acaso que nessa primeira etapa de sua obra Lacan definiu o inconsciente justamente como o “discurso do Outro”. É no campo do Outro que de modo autônomo os significantes se articulam uns aos outros produzindo-nos como um mero efeito.

Assim, inicialmente lugares vazios, nós, enquanto sujeitos, vamos adquirindo substância – uma substância sempre provisória e evanescente, diga-se de passagem – ao sermos preenchidos com as significações vindas do campo do Outro, constituindo-nos como meros efeitos da cadeia de significantes.

                           ***

"Se você considera que já entendeu, provavelmente estará errado"

Lacan 


Licença Creative Commons
Claudio Castoriadis- O conteúdo deste site está licenciado sob a Licença Creative Commons Atribuição 3,0 ..