domingo, 26 de agosto de 2012
Dionísio despedaçado
Em um simplório
vilarejo de Roecken (saxônia) nas redondezas de Leipzig, aldeiazinha da
Prússia, a 15 de outubro de 1844, nasce Friedrich Wilhelm Nietzsche. Filho de
Karl Ludwig Nietzsche e de Franziska Oehler - ele traz os prenomes do rei da
Prússia-, sendo descendente direto, de ambos os lados da família, de uma longa
série de teólogos e pastores luteranos. Nietzsche foi educado em Naumburg, num
meio feminino, sob os cuidados da mãe, ele era uma criança prodígio; suas
dissertações e ensaios de composições musicais esboçam desde cedo uma criança
precisamente brilhante e prodígio. No período de onze anos foi professor de
grego latim na então cultuada universidade da Basiléia, na suíça. De imediato
sua estada nessa cidade foi tranqüila onde nos primeiros anos dava regulamente
cursos, palestras e dedicava-se seriamente a escrita. Entretanto, vale
ressaltar que, nem a filologia nem o ensino proporcionavam-lhe alegria; ainda
assim, tal época foi ponto determinante em sua carreira, afinal, descobriu
Schopenhauer e, foi ingresso no circulo familiar de Wagner1,
referências intelectuais com quem havia entrado em contato ainda quando
estudava em Leipzig. Embora perenemente frágil Nietzsche ficou conhecido por
suas peregrinações e viagens, sempre em busca de lugares favoráveis para
expressar suas ideias que culminavam em seu espírito. Em meio a crises, onde
muitas vezes, não podia ler e escrever confessava ser seu pensamento derradeiro
e único consolo. De estação em estação, habituado à pérfida condição de
pensador solitário errante, Nietzsche Viveu quase sempre em miseráveis moradias
tencionando organizar uma existência tranqüila em sua conturbada e melancólica
vida passando a escolher criteriosamente climas favoráveis para sua saúde e
produção intelectual. Com isso, em meio a suas constantes e longas andanças
ocorre um dos momentos mais memoráveis não só para Nietzsche como também para
filosofia, em meados de agosto de 1881, o deslumbramento do eterno retorno
atravessou-lhe o espírito. Uma experiência singular vivida durante uma de suas
caminhadas costumeiras a margem do lago de Silva plana em Sils-Maria. Tomado
pela euforia dessa visão Nietzsche tratou de conservar tal pensamento no mais
recôndito de seu coração. Mas, logo em seguida contemplara seus leitores com a
riqueza dessa doutrina nas cultuadas páginas de um de seus mais belos livros: A
Gaia Ciência.
Sua
influência pesou nas mais diversas escolas filosóficas ao longo do século XX,
amado por muitos e desprezado por outros, Nietzsche se tornou um fenômeno sem
paralelos na história da filosofia. A característica principal do “evento
Nietzsche” sem sombra de dúvidas foi sua afinidade com a figura de Dionísio2
que no pensamento esotérico dos dionisíacos é puro ato presente em toda parte,
eternamente anelante da potência. Símbolo de todas as forças da natureza,
Dionísio deus da terra, um ser vivo que engloba o homem e lhe da o verdadeiro
sentido da existência. De fato, o estupor causado por essa encarnação divina
encontrou em Nietzsche um fiel seguidor que habitou no beço do drama, vivendo,
em carne e osso: a dissolução trazida pelo culto a vida. Com extremo rigor,
Nietzsche não apenas sentiu como também viveu muito da concepção dionisíaca,
marcando-a com precisos traços de sua psicologia pessoal. De certo modo sua
genialidade foi singular por se aproveitar de tal simbólica para servir de
símbolo acreditando ser mesmo um nobre solitário, reflexo humano de Dionísio.
Sempre solitário, vivendo sua agonizante solidão como seu último recurso,
agraciado por ter um espírito cheio de amor e sabedoria e, constantemente
torturado por não encontrar receptáculo. Certamente por não encontrar quem
quisesse seu saber, em Nietzsche tudo era melancolia, angústia e fúria, constantemente
pairando em um universo perturbado por dolorosas experiências e desilusões, sem
ajuda, sem princípios, sem esperança, sem pátria, sem uma única lembrança
amiga. Porém, sua exuberante solidão encontrava-se cheia de luz servindo de
consolo para um Nietzsche disperso, um Dionísio despedaçado. Por ser um
incansável emissário do instinto dionisíaco, amante da alegria dionisíaca da
vida, poeta e filósofo irrevogavelmente contundente; encontra-se latente em sua
vida e obras ditirambos dramáticos - uma filosofia caracterizada por dar
primazia a vontade e ao inconsciente.
*
* *
Apontando
de imediato as diferenciações morais de valor em seu pensamento, Nietzsche deu
início ao chamado “procedimento genealógico” determinado na explicação da
dualidade ética pondo em relevo dois tipos psicológicos - nobres e ressentidos
-. Por esse motivo compreendemos em sua filosofia uma preocupação pela
dissecação dos valores morais tencionando explicações exaustivas e plausíveis
denunciando possíveis atitudes e virtudes qualitativas originadas de uma classe
nobre, formada em sua totalidade pelos indivíduos de uma possível espécie dominante,
e uma classe de escravos onde se encontra atrelada os dominados e dependentes
em qualquer sentido. Vale ressaltar, que, poucos filósofos estudaram tão
profundamente a conduta humana. Foi um psicólogo extraordinário, revelou para o
mundo todo o horror, frieza e beleza existente nos valores morais. Viu na moral
nada mais que a personificação da decadência, que segundo o psicólogo Nietzsche,
seria sintoma do ressentimento humano, a degenerescência da filosofia. Em fim,
formas acusatórias do pensamento e da vida. “Martelo e transmutação”, eis a
fórmula de sua filosofia, exuberante e radical, que discorre sobre o “Amor
fati”, fórmula para a grandeza do homem. Nessa mesma esteira Nietzsche ainda
pode ser visto como um dos mediadores da corrente filosófica dedicada na luta
pela afirmação das identidades locais. Trouxe para si a responsabilidade de
conservar os verdadeiros valores que floresce da sensibilidade nobre.
Anti-revanchistas, Antifílisteus, antialemães, pregava no decorrer de toda sua
obra: a inevitável ligação entre destruição, a necessidade do trágico, do poder
sem limites e sem piedade suscitados pela vontade de domínio - impulso
fundamental que nada tem de causação racional.
Virtude
própria ao gênio enaltecedor da vida, Nietzsche tem sido interpretado de
inúmeras e diferentes maneiras; não existe um consenso definitivo por parte de
seus intérpretes. Sem nunca ser completamente decifrado, a beleza e rigor das
imagens poéticas de sua filosofia esboça um pensamento sempre aberto, ousado e
contundente. Um dos primeiros a desenvolver um trabalho de conjunto sobre seu
pensamento foi Charles Andler. Este, com determinação lançou entre 1920 e 1931,
seis volumes onde traçava as influências que pesou sobre a filosofia de
Nietzsche buscando reintroduzi-lo na tradição cultural; dedicou o primeiro dos
seis volumes a seus precursores e aqueles que julgou mais lhe haverem
impressionado: Goethe, Schiller, Holderlin, Kleist, Fichte, Schopenhauer,
Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Fontenelle, Chamfort, Estendhal,
Burckhardt e Emerson. E, com o mesmo entusiasmo, Andler examinou a influência
que os moralistas franceses, exerceram sobre Nietzsche, influência constatada
antes mesmo de sua estádia como professor na universidade de Basiléia. Com toda
competência, Andler também se propôs em traduzir wir philologen, titulo
de um ensaio que Nietzsche não chegou a completar, por “Nós, Humanistas”.
Logo em seguida vieram trabalhos que também
contribuíram com resultados significativos para um razoável conhecimento dos
seus manuscritos; Karl Jaspers merece ser lembrado por ter escrito em 1936 uma
rigorosa pesquisa sobre a vida e obra do autor de aurora e, vinte anos depois,
Walter Kalfmann se ateve em uma importante análise da teoria da vontade de
potência. Bem antes desses até agora citados, André Gide, nas Lettres á
Angéle, defende com competência a obra do mestre. Diz que: para uma
plausível compreensão de Nietzsche, acima de tudo é preciso amá-lo, e unicamente
o podem amar os cérebros aparelhados. E, prossegue com seus rasgados elogios
para o autor de Zaratustra reclamando que não o entenderam os que o
consideraram um demolidor, quando ele constrói e constrói sempre, e, quando
destrói o faz nobremente, gloriosamente, com a fúria de um jovem conquistador
que aniquila as coisas corroídas do passado. E ainda: “é a partir dele que foi
possível a criação e que a obra de arte pôde existir”. Com semelhante paixão
Daniel Halévy lançou uma biografia do poeta e filósofo, logo depois traduzida
para inglês, onde descreve um Nietzsche compassivo, exposto a vulgaridade da
sociedade do seu tempo. Heiriche Mann, Paul bourget, Albert Camos, Stefan
zweig, Lébrun, Muller-lauter e Peter Sloterdijk entre tantos outros em nossos
dias, escreveram competentes ensaios sobre sua obra, divulgando sua espantosa
variedade de aspectos. Enfim, dentre tantos pontos de vista, os devidos méritos
sejam atribuídos também para as brilhantes perspectivas que ainda reluzem como
pesquisa fundamental do seu legado; são as avaliações de Heidegger, Foucault e
Gilles Deleuze, esses dois últimos em especial por darem em meados da década de
1980, novas vertentes interpretativas aos leitores do Brasil. Como bem lembra
Scarlett Marton3.
*
* *
Lembremos
também sua importante contribuição para filosofia contemporânea quando,
interioriza a problemática acerca da metafísica ocidental tradicional, que,
antes por excelência inclinava-se em manter uma posição exclusivamente
transcendental. Claro que, questionamentos acerca da possibilidade metafísica
não é característica exclusiva de Nietzsche. São notórias objeções à metafísica
na filosofia de Hume e Kant e muitos outros filósofos. Porém, é pela sua
radicalização da metafísica que Nietzsche se difere dos demais críticos quando
com destreza desconcerta as dicotomias metafísicas. Por esse motivo é visível
no contexto de suas considerações uma forte preocupação em manter uma postura
desprovida de intenções metafísicas. “O filosofar de Nietzsche exclui, como
pergunta relevante para o acontecer efetivo, a pergunta pelo fundamento do
ente, no sentido da metafísica tradicional” defende Wolfgang Muller-Lauter
em seu importante ensaio a doutrina da vontade de poder em Nietzsche.
Elegantemente
o nobre mestre dionisíaco convida seus leitores para uma leitura compromissada
e intensiva de seus escritos, leitores com coragem e sensibilidade para
respirar o ar que norteia toda a atmosfera do seu discurso. Poesia e
genialidade inclinada para espíritos-livres, estes, com “profundidade”, com
“prudência e precaução”, com “segundas intenções”, “portas abertas”, com “dedos
e olhos delicados”. E para aqueles desavisados, aventureiros embriagados pelos
ditirambos e audazes críticas estas, tragicamente convertidas em “lamentações dionisíacas”,
o próprio Nietzsche, em um tom “provocante” que lhe é peculiar alerta:
“aprendam a me ler bem”. Ao mesmo tempo em que desafia seus leitores e
críticos: “quem, pois, teria a coragem de lançar um olhar no inferno das
angústias morais”. Enfim, seus textos são inclinados para leitores audazes e
filólogos perfeitos; -“Filólogo” nesse contexto remete especificamente aquele
leitor que domina a arte de ler bem, com rigor, precisão e paciência-.
Seu
estilo irreverente, poeticamente ousado devido seu espírito vigoroso, nos
presenteia com concepções, ora de modo velado e alusivo, ora límpido por meio
de aforismos sem atenuar a complexidade de seus manuscritos. Características
estas entre tantas outras que, asseguraram o encanto peculiar que emana da
multiplicidade das perspectivas adquiridas mediante reflexões minuciosas de
vários pontos de vista da sua obra. Sempre conduzindo suas críticas com ironia
e sarcasmo, Nietzsche marcou seu estilo com uma força especial de persuasão
aderindo o hábito filosófico de provocar seus desafetos. Das suas tantas
provocações, a recusa de instaurar um sistema merece ser lembrada. Afinal,
pensar Nietzsche como sistemático é tão absurdo como enclausurar um “abismo” em
um frágil recipiente; nada mais avesso à grandeza do seu pensamento do que
limitar o encanto dos seus escritos em um campo monolítico - a sensibilidade de
sua filosofia não se limita em uma postura estática. Ao contrário, se expande
esnobando uma reflexão definitiva. Nietzsche se ateve nessa postura não apenas
por querer evitar uma unidade metodológica, mas, principalmente receoso pela
dogmática instaurada á margem de um sistema.
A
repercussão do seu pensamento se fez visível não apenas na filosofia, sua
influência discorre também na política, na psicanálise, nas artes, na
literatura e até mesmo na música. Richard Strauss, por exemplo, escreveu um
poema sinfônico a partir de um de seus livros; música esta utilizada por
Stanley Kubrick na abertura de 2001, uma odisséia no espaço. Porém, um
dos pontos negativos de tanta exposição do seu pensamento foram as apropriações
indevidas de sua filosofia. Das diversas apropriações ideológicas que
contribuíram para as deturpações, e, falsificações da sua filosofia; lembremos
da “monstruosa” e “desqualificada” atitude equivocada da sua irmã Elizabeth
Förster Nietzsche, nacionalista alemã fanática que após o grande feito de
organizar o Nietzsche-Archiv, em Weimar, Erroneamente apresenta “vontade de
potência” para o mundo como síntese do pensamento Nietzschiano; uma “suposta”
obra principal de Nietzsche a serviço dos ideais chauvinistas - nazismo. De
fato, existiu a intenção pela parte do filósofo de um projeto literário
intitulado vontade de potência. Infelizmente o resultado findou sendo uma
coletânea póstuma de fragmentos intitulada a partir de um conceito que
permaneceu inacabado no pensamento do filósofo por ocasião da crise de Turim. E,
por ser esse termo apresentado de forma tão fragmentária, uma nuvem negra de
interpretações pairou sobre sua obra; dando margem as mais virulentas
interpretações. A esse propósito, comenta Mazzino Montinari: “assim terminam,
na vigília do próprio fim de Nietzsche, as vicissitudes do projeto literário da
vontade de potência”. Felizmente, na
medida em que traduções e estudos rigorosos a cerca dessa intrigante
problemática se estendiam, várias teorias foram se desmoronando devido à falta
de argumentos consistentes - no tocante à utilização indevida que fascistas e
nazistas fizeram da filosofia de Nietzsche, intelectuais do porte de Jean-wahl,
klossowski se encarregaram em desmascarar as gritantes apropriações.
*
* *
Em
meio a tantas opiniões, algumas a seu favor e, tantas outras contra, umas
incentivando a pensar com ele reconhecendo os limites e a grandeza da sua
filosofia, muitas outras advertindo por diferentes perspectivas os custos
negativos de sua obra; compreendemos que, de diferentes maneiras não são os
poucos que permanecem na mesma questão, realçando o mal estar que ainda hoje
lhes provocam os manuscritos do filosofo; investigando até que ponto sua
filosofia é contraditória ou não, problematizando um autor conflituoso, tanto
em suas obras publicadas como nas póstumas. Mas afinal, tendo como pano de
fundo um principio metodológico, como devemos proceder perante sua
filosofia? Como ficou constatado, desde
sua crise em Turim, não só sua filosofia, mas, sua biografia e estilo ficaram a
mercê das mais diversas interpretações. Ora, ouve momentos que o redator de
Zaratustra chegou a ser interpretado como um “anarquista intelectual” - fato
este ocorrido na Espanha no início do século; assim como também fora defendido
como pensador de direita na França e, logo adiante paradoxalmente sua filosofia
serviu como pano de fundo para a extrema esquerda francesa. Todavia, não
importa o contexto nem a que custo, o que deveras ficou comprovado foi que a
filosofia de Nietzsche não se restringe em nenhum arcabouço político, mesmo que
para muitos seu discurso favoreça a todos. Felizmente interpretações
alimentadas e amparadas por recortes arbitrários ideologizantes perdem sustento
pela superficialidade de seus argumentos.
Pois
bem, sendo seus manuscritos alvo fácil para deturpadores, não seria o caso de
desqualificamos uma obra especifica? Ou não estamos autorizados sobre nenhuma
hipótese desqualificar (o que seria uma atitude precipitada) uma de suas obras,
sem antes analisar a mesma de modo estratégico? Nesse contexto, nada mais justo
do que principiamos uma cautelosa locomoção no círculo da sua interpretação, em
questionar a ordenação sistemática da
mediocridade editorial das possíveis deturpações grosseiras do seu pensamento,
e, principalmente acima de tudo é preciso evitar o contra senso em considerar
os aforismos e fragmentos - estes peças fundamentais para os deturpadores-
publicados após sua morte desqualificados por serem póstumos. É importante
ainda lembrar que houve trabalhos sérios dirigidos com extrema cautela e
maestria que foram de suma importância para o resgate do real sentido dos
manuscritos de Nietzsche que, devido aos recortes arbitrários se encontrava
descaracterizado. Ressaltemos o impecável e ainda em ascensão trabalho de
Giorgio Colli e Mazzino Montinari pondo em público a edição crítica das obras
completas de Nietzsche.
Enfim,
o que podemos constatar a despeito das divergências de perspectivas acerca da
sua doutrina é um espantoso “abismo de suspeitas” entre um Nietzsche idealizado
por sua irmã e um outro “resgatado” a partir das traduções minuciosas coordenadas
nos arquivos Nietzsche em Weimar; e, foi a sombra desse apático “abismo” que
brotaram interpretações de um Nietzsche chauvinista, anarquista, pensador de
direita, porta voz de extrema esquerda, anti-semita, dentre tantas e outras
intrigantes opiniões. Ora, de outro “abismo” bem mais intimidante, este,
tragicamente mais profundo, fonte da angústia dos valores morais, ascende o
vigoroso e inquebrantável “espírito dionisíaco” que vagueia solitário, munido
com sua energia sem discrepância por salas e corredores dos centros acadêmicos
das diversas partes do mundo assombrando a todos em um tom irônico martelando a
nós viventes com a seguinte provocação: “vós não sois águias: por isso não
conhecestes o gozo no assombro do espírito. Quem não é ave não deve fazer seu
ninho sobre abismos”.
Assim falou Zaratustra
Por Claudio Castoriadis
Sobre o Autor:
Claudio Castoriadis |
sábado, 11 de agosto de 2012
Vilarejo
/Para minha alma envia o Cronida supremo pesar, fome e peste - As casas se arruínam pelos desígnios do Deus dos oprimidos. Em festins descanso, nos montes curvo meu corpo onde o carvalho no topo traz bálanos. Será tudo obra do acaso? Silêncio em meu vilarejo/
* * *
Por Claudio Castoriadis
Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |
sexta-feira, 10 de agosto de 2012
Marilena Chauí tritura a mídia golpista
Entrevista concedida ao jornalista João Peres, publicada na Rede Brasil (outubro de 2010)
Em entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual, a professora de filosofia da USP aponta setores ruralistas e classe média urbana como focos de anti-Lula. Ela faz reiteradas críticas à ameaça à liberdade de expressão provocada pela concentração dos meios de comunicação.
Marilena Chauí pensa que a velha mídia está nos seus estertores. A filósofa e professora da Universidade de São Paulo (USP) entende que o surgimento da internet, o crescimento das alternativas e as atuais eleições delineiam o fim de um modelo.
A professora, que deixou de escrever e de falar para a velha mídia por não concordar com a postura de vários desses veículos, entende que a imprensa tem papel fundamental para a ausência de debate de temas-chave nas atuais eleições, alimentando questões que favorecem à candidatura de José Serra (PSDB).
Ela considera que não é possível falar de democracia quando se tem o poder da comunicação concentrado em poucas famílias, sem que a sociedade tenha a possibilidade de contestação. Após ato pró-Dilma Rousseff (PT), na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, no centro da capital paulista, a filósofa manifestou à Rede Brasil Atual que os ruralistas e a classe média urbana são os setores que alimentam o ódio a Lula.
Marilena Chauí aponta, sempre em meio a muitos gestos e a uma fala enfática, que o presidente jamais será perdoado. O motivo? Combateu a desigualdade no país.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:
O único ponto aparente de consenso entre os institutos de pesquisa é quanto à aprovação do governo Lula. Que grupos estão entre os 4% da população que consideram ruim ou péssimo o desempenho do presidente?
É um mistério para mim. Tudo que tenho ouvido, sobretudo no rádio, em entrevistas sobre os mais diversos temas, vai tudo muito bem. Os setores que eu imaginaria que diriam que o governo ruim não são. Surpreendentemente.
Mas há dois setores que são "pega pra capar". Um é evidentemente a agroindústria, mas é assim desde o primeiro governo Lula. Eles formam esse mundo ruralista que o DEM representa. Não são nem adversários, são inimigos. Inimigos de classe.
O segundo setor é a classe média urbana, que está apavorada com a diminuição da desigualdade social e que apostou todas suas fichas na ideia de ascensão social e de recusa de qualquer possibilidade de cair na classe trabalhadora. Ao ver o contrário, que a classe trabalhadora ascende socialmente e que há uma distribuição efetiva de renda, se apavorou porque perdeu seu próprio diferencial. E seu medo, que era de cair na classe trabalhadora, mudou. Foram invadidos pela classe trabalhadora.
Os trabalhadores têm reconquistado direitos e, com isso, setores do empresariado reclamam que há risco de perda de competitividade pelo mercado brasileiro.
Isso é uma conversa para a campanha eleitoral. É coisa da Folha, do Estadão, do Globo, da Veja, não é para levar a sério. E se você for lá e pedir para provar (que perderia competitividade), vão dizer que não falaram, que foi fruto das circunstâncias. Eles sabem que é uma piada isso que estão dizendo, não tem qualquer consistência.
A senhora passou por uma situação parecida à da psicanalista Maria Rita Kehl, agora dispensada pelo Estadão por ter elogiado o governo Lula...
Não foi parecida porque não fui demitida. Eu disse a eles que me recusava a escrever lá. Tanto no Estado quanto na Folha. Tomei a iniciativa de dizer a eles que não teriam minha colaboração.
Quando li o artigo da Maria Rita Kehl, pensei mesmo que poderia dar algum problema. Como é que o Estadão deixou o artigo sair? Era de se esperar que houvesse uma censura prévia.
Agora, se você tomar o que aconteceu nos últimos oito ou nove anos, vai ver que houve uma peneirada e uma parte das pessoas de esquerda simplesmente desistiu de qualquer relação com a mídia. Outras tiveram relação esporádica em momentos muito pontuais em que era preciso se expressar publicamente.
Houve, em um primeiro momento, um deslocamento das pessoas de esquerda para o Estadão, mas um deslocamento que não tinha como durar porque o jornal não tinha como abrigar esse tipo de pensamento.
Desapareceu para valer qualquer pretensão da mídia até mesmo de se oferecer sob uma perspectiva liberal. E sob uma perspectiva democrática. É formidável que no momento em que dizem que nós, do PT, ameaçamos a liberdade de imprensa, eles demitam a Maria Rita.
O que acho, com o segundo turno das eleições de Lula e as eleições da Dilma, é que há um estilo de mídia que está nos seus estertores. O fato de que haja internet e mídia alternativa que se espalha pelo Brasil inteiro muda completamente o padrão.
Passa-se de jornais que tinham função de noticiar para jornais que têm a função de opinar, o que é um contrassenso. A busca pela notícia faz com que não se vá mais em direção ao jornal, vá se buscar em outros lugares.
Em períodos eleitorais, tem sido recorrente a associação entre mídia e partidos políticos. Qual a implicação disso na tentativa de consolidação da democracia?
Isso é o que atrapalha a democracia do ponto de vista da liberdade do pensamento e de expressão. O que caracteriza uma sociedade democrática é o direito de produzir informação e de receber informação, de modo que possa circular, ser transformada. O que se tem é a ausência da informação, a manipulação da opinião e a mentira.
Acabo de ver em um site a resposta do Marco Aurélio Garcia (um dos coordenadores de campanha de Dilma) à manchete da Folha. Como é que a Folha dá manchete falando que Dilma vai tirar a questão do aborto do programa de governo se essa questão não está no programa? É dito qualquer coisa.
Desapareceu o compromisso mínimo com a verdade, o compromisso mínimo com a informação. É uma coisa de partido, puramente ideológica, perversa, de produção da mentira. Isso me lembra muito um ensaio que Hannah Arendt escreveu na época da Guerra do Vietnã. Ela comentava as mentiras que a TV, o rádio e os jornais apresentavam. Apresentavam a vitória no Vietnã, até o instante em que a mentira encontrou um limite tal nos próprios fatos que a verdade teve que aparecer. Ela chamou isso de crise da República, que é quando tem a mentira no lugar da informação. Ou seja, a desinformação. Isso não serve para a democracia.
O governo Lula teve, internamente, a convivência de polos opostos. Talvez tenha sido o primeiro a ter, por exemplo, Ministério de Desenvolvimento Agrário voltado a agricultura familiar e dialogando com o MST e o Ministério da Agricultura, voltado para o agronegócio. O governo e o presidente se saíram bem na tarefa de fazer opostos conviverem?
Sim. E isso é um talento peculiar que o presidente Lula tem, de ser um negociador nato. Como uma boa parte do trabalho do governo foi feita pela Casa Civil, podemos dizer que Dilma Rousseff tem a capacidade de fazer esse trânsito e essa negociação.
Mas como explicar as reações provocadas?
Duas coisas são muito importantes com relação ao atual governo. A primeira é que o governo Lula jamais será perdoado por ter enfrentado a questão da desigualdade social. Lula enfrentou a partir da própria figura dele. O fato de você ter um presidente operário, que tem o curso primário (Lula tem o ensino médio completo), significou a ruína da ideologia burguesa. Todos os critérios da ideologia burguesa para ocupar este posto (Presidência da República), que é ser da elite financeira, ter formação universitária, falar línguas estrangeiras, ter desempenho de gourmet... Enfim, foi descomposta uma série de atrativos que compõem a figura que a burguesia compôs para ocupar a Presidência. Ponto por ponto.
A burguesia brasileira e a classe média protofascista nunca vão perdoar isso ter acontecido. Imagine como eles se sentem. Houve (Nelson) Mandela, Lula, (Barack) Obama, (Hugo) Chávez. É muita coisa para a cabeça deles. É insuportável. É a sensação de fim de mundo.
Tudo que fosse possível fazer para destruir esse governo foi feito. Por que não caiu? Não caiu porque foi capaz de operar a negociação entre os polos contrários. Isso é uma novidade no caso do Brasil porque, normalmente, opera-se por exclusão. O que o governo fez foi operar por entendimento. E a possibilidade de corrigir uma coisa pela outra.
Agora, há milhares de problemas que o próximo governo vai ter de enfrentar. Não podemos cobrar de nós mesmos que façamos em oito ou em 16 anos o que não foi feito em 500. Mas quando se olha o que já foi feito, leva-se um susto. A redução da desigualdade, a inclusão no campo dos direitos de milhões de pessoas, o Luz para Todos, a casa (Minha Casa, Minha Vida), o Bolsa-Família, a (geração de empregos com) carteira assinada... É uma coisa nunca feita no Brasil.
A sra. faz uma avaliação muito positiva do governo. Por que essas medidas não ocorreram antes?
Alguém tinha de vir das classes trabalhadoras para dizer o que precisa fazer no Brasil. Os governos anteriores sequer levavam em conta que isso existia. O máximo que existia era o incômodo de ver essa gente pela rua, embaixo da ponte, fazendo greve, no ponto de ônibus, caindo pelas tabelas na condução pública. Era uma coisa assim que incomodava - (diziam:) "é meio feio, né? É antiestético". O máximo de reação que a presença de classes populares causava era por serem antiestéticos. É a primeira vez que essa classe foi levada a sério.
Eles vão estrebuchar, vão gritar, vão xingar. Vão pintar a saracura, como diria minha mãe. Mas é isso aí. Deixa pintar a saracura que nós ficamos em pé.
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Em entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual, a professora de filosofia da USP aponta setores ruralistas e classe média urbana como focos de anti-Lula. Ela faz reiteradas críticas à ameaça à liberdade de expressão provocada pela concentração dos meios de comunicação.
Marilena Chauí pensa que a velha mídia está nos seus estertores. A filósofa e professora da Universidade de São Paulo (USP) entende que o surgimento da internet, o crescimento das alternativas e as atuais eleições delineiam o fim de um modelo.
A professora, que deixou de escrever e de falar para a velha mídia por não concordar com a postura de vários desses veículos, entende que a imprensa tem papel fundamental para a ausência de debate de temas-chave nas atuais eleições, alimentando questões que favorecem à candidatura de José Serra (PSDB).
Ela considera que não é possível falar de democracia quando se tem o poder da comunicação concentrado em poucas famílias, sem que a sociedade tenha a possibilidade de contestação. Após ato pró-Dilma Rousseff (PT), na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, no centro da capital paulista, a filósofa manifestou à Rede Brasil Atual que os ruralistas e a classe média urbana são os setores que alimentam o ódio a Lula.
Marilena Chauí aponta, sempre em meio a muitos gestos e a uma fala enfática, que o presidente jamais será perdoado. O motivo? Combateu a desigualdade no país.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:
O único ponto aparente de consenso entre os institutos de pesquisa é quanto à aprovação do governo Lula. Que grupos estão entre os 4% da população que consideram ruim ou péssimo o desempenho do presidente?
É um mistério para mim. Tudo que tenho ouvido, sobretudo no rádio, em entrevistas sobre os mais diversos temas, vai tudo muito bem. Os setores que eu imaginaria que diriam que o governo ruim não são. Surpreendentemente.
Mas há dois setores que são "pega pra capar". Um é evidentemente a agroindústria, mas é assim desde o primeiro governo Lula. Eles formam esse mundo ruralista que o DEM representa. Não são nem adversários, são inimigos. Inimigos de classe.
O segundo setor é a classe média urbana, que está apavorada com a diminuição da desigualdade social e que apostou todas suas fichas na ideia de ascensão social e de recusa de qualquer possibilidade de cair na classe trabalhadora. Ao ver o contrário, que a classe trabalhadora ascende socialmente e que há uma distribuição efetiva de renda, se apavorou porque perdeu seu próprio diferencial. E seu medo, que era de cair na classe trabalhadora, mudou. Foram invadidos pela classe trabalhadora.
Os trabalhadores têm reconquistado direitos e, com isso, setores do empresariado reclamam que há risco de perda de competitividade pelo mercado brasileiro.
Isso é uma conversa para a campanha eleitoral. É coisa da Folha, do Estadão, do Globo, da Veja, não é para levar a sério. E se você for lá e pedir para provar (que perderia competitividade), vão dizer que não falaram, que foi fruto das circunstâncias. Eles sabem que é uma piada isso que estão dizendo, não tem qualquer consistência.
A senhora passou por uma situação parecida à da psicanalista Maria Rita Kehl, agora dispensada pelo Estadão por ter elogiado o governo Lula...
Não foi parecida porque não fui demitida. Eu disse a eles que me recusava a escrever lá. Tanto no Estado quanto na Folha. Tomei a iniciativa de dizer a eles que não teriam minha colaboração.
Quando li o artigo da Maria Rita Kehl, pensei mesmo que poderia dar algum problema. Como é que o Estadão deixou o artigo sair? Era de se esperar que houvesse uma censura prévia.
Agora, se você tomar o que aconteceu nos últimos oito ou nove anos, vai ver que houve uma peneirada e uma parte das pessoas de esquerda simplesmente desistiu de qualquer relação com a mídia. Outras tiveram relação esporádica em momentos muito pontuais em que era preciso se expressar publicamente.
Houve, em um primeiro momento, um deslocamento das pessoas de esquerda para o Estadão, mas um deslocamento que não tinha como durar porque o jornal não tinha como abrigar esse tipo de pensamento.
Desapareceu para valer qualquer pretensão da mídia até mesmo de se oferecer sob uma perspectiva liberal. E sob uma perspectiva democrática. É formidável que no momento em que dizem que nós, do PT, ameaçamos a liberdade de imprensa, eles demitam a Maria Rita.
O que acho, com o segundo turno das eleições de Lula e as eleições da Dilma, é que há um estilo de mídia que está nos seus estertores. O fato de que haja internet e mídia alternativa que se espalha pelo Brasil inteiro muda completamente o padrão.
Passa-se de jornais que tinham função de noticiar para jornais que têm a função de opinar, o que é um contrassenso. A busca pela notícia faz com que não se vá mais em direção ao jornal, vá se buscar em outros lugares.
Em períodos eleitorais, tem sido recorrente a associação entre mídia e partidos políticos. Qual a implicação disso na tentativa de consolidação da democracia?
Isso é o que atrapalha a democracia do ponto de vista da liberdade do pensamento e de expressão. O que caracteriza uma sociedade democrática é o direito de produzir informação e de receber informação, de modo que possa circular, ser transformada. O que se tem é a ausência da informação, a manipulação da opinião e a mentira.
Acabo de ver em um site a resposta do Marco Aurélio Garcia (um dos coordenadores de campanha de Dilma) à manchete da Folha. Como é que a Folha dá manchete falando que Dilma vai tirar a questão do aborto do programa de governo se essa questão não está no programa? É dito qualquer coisa.
Desapareceu o compromisso mínimo com a verdade, o compromisso mínimo com a informação. É uma coisa de partido, puramente ideológica, perversa, de produção da mentira. Isso me lembra muito um ensaio que Hannah Arendt escreveu na época da Guerra do Vietnã. Ela comentava as mentiras que a TV, o rádio e os jornais apresentavam. Apresentavam a vitória no Vietnã, até o instante em que a mentira encontrou um limite tal nos próprios fatos que a verdade teve que aparecer. Ela chamou isso de crise da República, que é quando tem a mentira no lugar da informação. Ou seja, a desinformação. Isso não serve para a democracia.
O governo Lula teve, internamente, a convivência de polos opostos. Talvez tenha sido o primeiro a ter, por exemplo, Ministério de Desenvolvimento Agrário voltado a agricultura familiar e dialogando com o MST e o Ministério da Agricultura, voltado para o agronegócio. O governo e o presidente se saíram bem na tarefa de fazer opostos conviverem?
Sim. E isso é um talento peculiar que o presidente Lula tem, de ser um negociador nato. Como uma boa parte do trabalho do governo foi feita pela Casa Civil, podemos dizer que Dilma Rousseff tem a capacidade de fazer esse trânsito e essa negociação.
Mas como explicar as reações provocadas?
Duas coisas são muito importantes com relação ao atual governo. A primeira é que o governo Lula jamais será perdoado por ter enfrentado a questão da desigualdade social. Lula enfrentou a partir da própria figura dele. O fato de você ter um presidente operário, que tem o curso primário (Lula tem o ensino médio completo), significou a ruína da ideologia burguesa. Todos os critérios da ideologia burguesa para ocupar este posto (Presidência da República), que é ser da elite financeira, ter formação universitária, falar línguas estrangeiras, ter desempenho de gourmet... Enfim, foi descomposta uma série de atrativos que compõem a figura que a burguesia compôs para ocupar a Presidência. Ponto por ponto.
A burguesia brasileira e a classe média protofascista nunca vão perdoar isso ter acontecido. Imagine como eles se sentem. Houve (Nelson) Mandela, Lula, (Barack) Obama, (Hugo) Chávez. É muita coisa para a cabeça deles. É insuportável. É a sensação de fim de mundo.
Tudo que fosse possível fazer para destruir esse governo foi feito. Por que não caiu? Não caiu porque foi capaz de operar a negociação entre os polos contrários. Isso é uma novidade no caso do Brasil porque, normalmente, opera-se por exclusão. O que o governo fez foi operar por entendimento. E a possibilidade de corrigir uma coisa pela outra.
Agora, há milhares de problemas que o próximo governo vai ter de enfrentar. Não podemos cobrar de nós mesmos que façamos em oito ou em 16 anos o que não foi feito em 500. Mas quando se olha o que já foi feito, leva-se um susto. A redução da desigualdade, a inclusão no campo dos direitos de milhões de pessoas, o Luz para Todos, a casa (Minha Casa, Minha Vida), o Bolsa-Família, a (geração de empregos com) carteira assinada... É uma coisa nunca feita no Brasil.
A sra. faz uma avaliação muito positiva do governo. Por que essas medidas não ocorreram antes?
Alguém tinha de vir das classes trabalhadoras para dizer o que precisa fazer no Brasil. Os governos anteriores sequer levavam em conta que isso existia. O máximo que existia era o incômodo de ver essa gente pela rua, embaixo da ponte, fazendo greve, no ponto de ônibus, caindo pelas tabelas na condução pública. Era uma coisa assim que incomodava - (diziam:) "é meio feio, né? É antiestético". O máximo de reação que a presença de classes populares causava era por serem antiestéticos. É a primeira vez que essa classe foi levada a sério.
Eles vão estrebuchar, vão gritar, vão xingar. Vão pintar a saracura, como diria minha mãe. Mas é isso aí. Deixa pintar a saracura que nós ficamos em pé.
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quinta-feira, 2 de agosto de 2012
Liberdade: Um bem fundamental.
Por Claudio Castoriadis
Claudio Castoriadis |
Nietzsche : Limite da racionalidade humana
3.2. Limite da racionalidade humana
A visão
trágica da cultura grega está para Nietzsche no mais alto conceito: resgatar o
pensamento dos primeiros pensadores foi uma tarefa que o Nietzsche tomou para
si buscando uma visão emancipadora da humanidade, como expressão de prazer pela
existência, potencialização e celebração da vida. É sobre essas virtudes que
Nietzsche encontra na cultura trágica o impulso necessário para a desconstrução
da metafisica e da negação do racionalismo teórico.
Pois bem! O que percebemos nesse momento é que a
estratégia adotada por Nietzsche é brilhante, visto que o que deveras estava
sendo colocado em questão desde o início era domínio do discurso metafisico. Se
for verdade que a filosofia compreendida como busca da verdade, amor ao
conhecimento e coroamento da razão, como liberdade de pensar, emancipação
espiritual ou passagem do conhecimento comum para o científico é sintoma de
decadência, então ela mais prejudicou do que beneficiou a vida, mais deturpou do
que iluminou a vida. Por isso a crítica do nosso filósofo se vislumbra por
inteira no pensador Sócrates. Como bem afirma Deleuze:
A degenerescência da filosofia
aparece claramente com Sócrates. Se definirmos a metafisica pela distinção de
dois mundos, pela oposição da
essência e da aparência, do verdadeiro e
do falso, do inteligível e do sensível, é preciso dizer que Sócrates inventou a
metafisica: ele faz da vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida,
limitada, e do pensamento, uma medida, um limite que exerce em nome dos valores
superiores (1981, p.19).
3.3. Crítica à metafísica como teoria de dois mundos
Quando Nietzsche se volta contra a metafisica, dela
contesta o sentido de dois mundos. Ou seja, temos claramente uma crítica
centralizada nas dicotomias metafisicas: sensível e inteligível, corpo e alma,
matéria e espírito, aparência e essência, verdade e mentira, realidade e
idealidade. Nietzsche não poupa críticas ao dualismo atrelado no otimismo
teórico socrático que, nesse contexto, seria o traço essencial de nossa
cultura. Sobre nenhuma hipótese deve existir lugar para dicotomias metafisicas
no pensamento nietzschiano. E foi à sombra do predomínio do otimismo de
Sócrates que, segundo Nietzsche, logo em seguida Platão estruturou sua
metafisica na qual o ente sensível e o ser inteligível foram separados. Com
isso, dois mundos se contrapõem se insinuando cientificamente como antípodas,
esferas heterogêneas, diferenças que negligenciam a primazia da realidade como
processo. Compreende-se, portanto, que a metafisica tal qual Nietzsche considerou
trata-se estritamente de uma teoria dos dois mundos, que desvaloriza este mundo
em nome de um outro, imutável e eterno. Todavia, como bem lembra Muller-Lauter
em A Doutrina da Vontade de Poder em
Nietzsche:
Nietzsche pode também se voltar
explicitamente contra a metafísica, mas podemos rapidamente nos convencer de
que dela fala apenas no sentido de uma teoria dos dois mundos
(Zweiwelltheorie). Se desconsiderarmos esse estreitamento, não pode ser mantida
a pretensão de Nietzsche de que sua filosofia não seja metafisica. (1997, p, 5)
Nessa separação entre mundo real e aparente
Nietzsche enxergou um preconceito contra a vida. Nessa distinção meticulosa e
decadente se encontra a metafísica tradicional de onde beberam tantos filósofos
dogmáticos. Com isso, podemos compreender que sua crítica à metafisica traz à
tona o que há de absurdo e mentiroso na crença de um mundo verdadeiro.
Lembrando que este é aprofundado ao mesmo tempo em Sócrates e logo em seguida,
em sua forma mais acabada, na metafísica platônica, a qual, como Nietzsche
compreendeu, preparou o advento do cristianismo com todo seu arcabouço teórico,
dando início ao que Nietsche considera uma lastimável ruptura da unidade entre
homem e mundo:
Há dois mil anos, Platão
expulsara os poetas da cidade, por se deixarem atrair pelo transitório e
efêmero, por não buscarem a verdade. Anti-platônico por excelência, Nietzsche
repele justamente os filósofos que visam ao essencial, ao imutável, ao eterno.
Mas, também, rejeita os poetas que se deixam seduzir pelo imperecível. Por isso
mesmo, investiga o que os princípios últimos e definitivos escondem e busca o
que se esconde por trás das verdades eternas e absolutas. Em sua campanha
contra a metafísica e contra a religião cristã, não hesita em confrontar-se com
os ídolos de seu tempo.
(Marton, 1999, p. 3)
Analisando essa passagem de Cadernos Nietzsche, é possível compreender que o problema da
cultura consiste em ser governada por sentimentos fracos, cultivados por
decadentes modelos éticos, deixando de joelhos os filósofos e a ciência,
perpetuando um novo tipo de indivíduo prisioneiro do imperativo categórico da
moralidade e da religião cristãs, ambas embasadas pelo discurso metafísico
culminante do otimismo socrático.
CONCLUSÃO
Finalmente, mediante essas considerações apercebemo-nos
que a urgência manifestada por Nietzsche no levantamento das questões morais é
diretamente correspondente à importância que ele dá à cultura. Aliás, em toda
sua trajetória intelectual Nietzsche ambicionou libertar o homem moderno
daquilo que ele considerou ser a maldição da modernidade. Por isso condenou
acima de tudo o otimismo teórico tão em voga em seu tempo.
Assim, ao longo desse trabalho ficou constatada uma
crítica à moral, dando ênfase em sua estrutura manipuladora. Com justeza,
compreendemos que Nietzsche defende a estreita relação entre valor e homem,
partindo do princípio do homem como legislador, crítico e criador. Nesse ponto,
a eficácia dos estudos de Nietzsche entra em cena: sua crítica é direcionada
com inteireza contra a ideia de uma ordem moral ou perspectiva atrelada aos
costumes, hábitos e tradições que persiste na falta de sentido histórico e
ligada ao sentimento de medo. Nesses termos, a moralidade não passa de
obediência incondicional ao costume. Não obstante, nosso pensador implode a
formação da moral desde sua estrutura, na adoração pelo costume, cultivada pelo
sentimento de medo.
Ficou constado também que a reflexão de Nietzsche
sobre a moral remete diretamente a um exame da história humana. Dessa forma,
vale ressaltar que mediante seu exame Nietzsche distingue dois tipos
psicológicos, dois tipos distintos de valoração: a maneira nobre de avaliar e
viver a vida e a maneira dos ressentidos, qualificando o tipo nobre quando o
mesmo exalta os valores primordiais da vida. Lembrando que nesse sentido
Nietzsche se refere precisamente à aristocracia guerreira dos tempos homéricos
e sua casta sacerdotal.
Com isso, foi compreendido que todos os valores que
sustentavam a moral posta em questão tinham sua origem no cristianismo,
principal alvo da crítica nietzschiana, por ter sua origem no ressentimento com
a vida. Não se detendo apenas na origem da moral e seu vínculo com o
cristianismo, foi analisada também a problemática de Sócrates como figura emblemática
de nossa pesquisa, por ser ele, segundo Nietsche, o responsável pela decadência
que se alastrou na cultura de seu tempo.
Com prudência, compreendemos no decorrer de nossa
pesquisa que o filósofo Nietzsche desmascarou a junção do otimismo teórico de
Sócrates, que buscava a verdade a qualquer custo embasando a moral e o
cristianismo que culminaram na negação da vida. E foi na figura de Sócrates que
Nietzsche encontrou o ponto negativo da metafisica. Sua crítica é contra a
ideia de uma ordem moral inclinada exclusivamente em outro mundo, o mundo das
ideias, como entende Nietzsche, que significou claramente o arranque do
pensamento religioso cristão, visto que a moral decadente depositou nas mãos de
um Deus antropomórfico toda a responsabilidade da ordem do mundo.
Ora, temos então uma crítica que finda em uma
problemática metafísica. Afinal, uma moral que toma como base valores
transcendentes, imutáveis e intocáveis mantidos em um mundo suprassensível nega
categoricamente qualquer hipótese dos valores serem fruto deste mundo terreno,
pois tem sua origem em outro mundo.
O combate de Nietzsche contra a cultura ocidental,
impregnada pelo otimismo teórico e, conforme apontamos, pelo seu herdeiro que é
o cristianismo, é feito com o objetivo de reafirmar a vida em sua plenitude, de
libertar a vida de uma moral que sufoca e contamina a cultura. Portanto,
constatamos aqui que o estopim da decadência da moral e da cultura europeia se
encontra no otimismo teórico do pensador Sócrates que acabou por embasar o erro
da metafísica, estabelecendo a crença em um mundo fictício.
Nietzsche
Uma Compreensão da Cultura do Ocidente
Como Sintoma de Decadência Moral
Monografia
defendida como Trabalho de Conclusão do Curso de Filosofia, para obtenção do
respectivo título de Licenciado.
Orientador
Prof.
Ms. William Coelho de Oliveira
DFI-FAFIC
Leia na íntegra os demais capítulos também nesse Blog
Claudio Castoriadis.
Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |
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