3.2. Limite da racionalidade humana
A visão
trágica da cultura grega está para Nietzsche no mais alto conceito: resgatar o
pensamento dos primeiros pensadores foi uma tarefa que o Nietzsche tomou para
si buscando uma visão emancipadora da humanidade, como expressão de prazer pela
existência, potencialização e celebração da vida. É sobre essas virtudes que
Nietzsche encontra na cultura trágica o impulso necessário para a desconstrução
da metafisica e da negação do racionalismo teórico.
Pois bem! O que percebemos nesse momento é que a
estratégia adotada por Nietzsche é brilhante, visto que o que deveras estava
sendo colocado em questão desde o início era domínio do discurso metafisico. Se
for verdade que a filosofia compreendida como busca da verdade, amor ao
conhecimento e coroamento da razão, como liberdade de pensar, emancipação
espiritual ou passagem do conhecimento comum para o científico é sintoma de
decadência, então ela mais prejudicou do que beneficiou a vida, mais deturpou do
que iluminou a vida. Por isso a crítica do nosso filósofo se vislumbra por
inteira no pensador Sócrates. Como bem afirma Deleuze:
A degenerescência da filosofia
aparece claramente com Sócrates. Se definirmos a metafisica pela distinção de
dois mundos, pela oposição da
essência e da aparência, do verdadeiro e
do falso, do inteligível e do sensível, é preciso dizer que Sócrates inventou a
metafisica: ele faz da vida qualquer coisa que deve ser julgada, medida,
limitada, e do pensamento, uma medida, um limite que exerce em nome dos valores
superiores (1981, p.19).
3.3. Crítica à metafísica como teoria de dois mundos
Quando Nietzsche se volta contra a metafisica, dela
contesta o sentido de dois mundos. Ou seja, temos claramente uma crítica
centralizada nas dicotomias metafisicas: sensível e inteligível, corpo e alma,
matéria e espírito, aparência e essência, verdade e mentira, realidade e
idealidade. Nietzsche não poupa críticas ao dualismo atrelado no otimismo
teórico socrático que, nesse contexto, seria o traço essencial de nossa
cultura. Sobre nenhuma hipótese deve existir lugar para dicotomias metafisicas
no pensamento nietzschiano. E foi à sombra do predomínio do otimismo de
Sócrates que, segundo Nietzsche, logo em seguida Platão estruturou sua
metafisica na qual o ente sensível e o ser inteligível foram separados. Com
isso, dois mundos se contrapõem se insinuando cientificamente como antípodas,
esferas heterogêneas, diferenças que negligenciam a primazia da realidade como
processo. Compreende-se, portanto, que a metafisica tal qual Nietzsche considerou
trata-se estritamente de uma teoria dos dois mundos, que desvaloriza este mundo
em nome de um outro, imutável e eterno. Todavia, como bem lembra Muller-Lauter
em A Doutrina da Vontade de Poder em
Nietzsche:
Nietzsche pode também se voltar
explicitamente contra a metafísica, mas podemos rapidamente nos convencer de
que dela fala apenas no sentido de uma teoria dos dois mundos
(Zweiwelltheorie). Se desconsiderarmos esse estreitamento, não pode ser mantida
a pretensão de Nietzsche de que sua filosofia não seja metafisica. (1997, p, 5)
Nessa separação entre mundo real e aparente
Nietzsche enxergou um preconceito contra a vida. Nessa distinção meticulosa e
decadente se encontra a metafísica tradicional de onde beberam tantos filósofos
dogmáticos. Com isso, podemos compreender que sua crítica à metafisica traz à
tona o que há de absurdo e mentiroso na crença de um mundo verdadeiro.
Lembrando que este é aprofundado ao mesmo tempo em Sócrates e logo em seguida,
em sua forma mais acabada, na metafísica platônica, a qual, como Nietzsche
compreendeu, preparou o advento do cristianismo com todo seu arcabouço teórico,
dando início ao que Nietsche considera uma lastimável ruptura da unidade entre
homem e mundo:
Há dois mil anos, Platão
expulsara os poetas da cidade, por se deixarem atrair pelo transitório e
efêmero, por não buscarem a verdade. Anti-platônico por excelência, Nietzsche
repele justamente os filósofos que visam ao essencial, ao imutável, ao eterno.
Mas, também, rejeita os poetas que se deixam seduzir pelo imperecível. Por isso
mesmo, investiga o que os princípios últimos e definitivos escondem e busca o
que se esconde por trás das verdades eternas e absolutas. Em sua campanha
contra a metafísica e contra a religião cristã, não hesita em confrontar-se com
os ídolos de seu tempo.
(Marton, 1999, p. 3)
Analisando essa passagem de Cadernos Nietzsche, é possível compreender que o problema da
cultura consiste em ser governada por sentimentos fracos, cultivados por
decadentes modelos éticos, deixando de joelhos os filósofos e a ciência,
perpetuando um novo tipo de indivíduo prisioneiro do imperativo categórico da
moralidade e da religião cristãs, ambas embasadas pelo discurso metafísico
culminante do otimismo socrático.
CONCLUSÃO
Finalmente, mediante essas considerações apercebemo-nos
que a urgência manifestada por Nietzsche no levantamento das questões morais é
diretamente correspondente à importância que ele dá à cultura. Aliás, em toda
sua trajetória intelectual Nietzsche ambicionou libertar o homem moderno
daquilo que ele considerou ser a maldição da modernidade. Por isso condenou
acima de tudo o otimismo teórico tão em voga em seu tempo.
Assim, ao longo desse trabalho ficou constatada uma
crítica à moral, dando ênfase em sua estrutura manipuladora. Com justeza,
compreendemos que Nietzsche defende a estreita relação entre valor e homem,
partindo do princípio do homem como legislador, crítico e criador. Nesse ponto,
a eficácia dos estudos de Nietzsche entra em cena: sua crítica é direcionada
com inteireza contra a ideia de uma ordem moral ou perspectiva atrelada aos
costumes, hábitos e tradições que persiste na falta de sentido histórico e
ligada ao sentimento de medo. Nesses termos, a moralidade não passa de
obediência incondicional ao costume. Não obstante, nosso pensador implode a
formação da moral desde sua estrutura, na adoração pelo costume, cultivada pelo
sentimento de medo.
Ficou constado também que a reflexão de Nietzsche
sobre a moral remete diretamente a um exame da história humana. Dessa forma,
vale ressaltar que mediante seu exame Nietzsche distingue dois tipos
psicológicos, dois tipos distintos de valoração: a maneira nobre de avaliar e
viver a vida e a maneira dos ressentidos, qualificando o tipo nobre quando o
mesmo exalta os valores primordiais da vida. Lembrando que nesse sentido
Nietzsche se refere precisamente à aristocracia guerreira dos tempos homéricos
e sua casta sacerdotal.
Com isso, foi compreendido que todos os valores que
sustentavam a moral posta em questão tinham sua origem no cristianismo,
principal alvo da crítica nietzschiana, por ter sua origem no ressentimento com
a vida. Não se detendo apenas na origem da moral e seu vínculo com o
cristianismo, foi analisada também a problemática de Sócrates como figura emblemática
de nossa pesquisa, por ser ele, segundo Nietsche, o responsável pela decadência
que se alastrou na cultura de seu tempo.
Com prudência, compreendemos no decorrer de nossa
pesquisa que o filósofo Nietzsche desmascarou a junção do otimismo teórico de
Sócrates, que buscava a verdade a qualquer custo embasando a moral e o
cristianismo que culminaram na negação da vida. E foi na figura de Sócrates que
Nietzsche encontrou o ponto negativo da metafisica. Sua crítica é contra a
ideia de uma ordem moral inclinada exclusivamente em outro mundo, o mundo das
ideias, como entende Nietzsche, que significou claramente o arranque do
pensamento religioso cristão, visto que a moral decadente depositou nas mãos de
um Deus antropomórfico toda a responsabilidade da ordem do mundo.
Ora, temos então uma crítica que finda em uma
problemática metafísica. Afinal, uma moral que toma como base valores
transcendentes, imutáveis e intocáveis mantidos em um mundo suprassensível nega
categoricamente qualquer hipótese dos valores serem fruto deste mundo terreno,
pois tem sua origem em outro mundo.
O combate de Nietzsche contra a cultura ocidental,
impregnada pelo otimismo teórico e, conforme apontamos, pelo seu herdeiro que é
o cristianismo, é feito com o objetivo de reafirmar a vida em sua plenitude, de
libertar a vida de uma moral que sufoca e contamina a cultura. Portanto,
constatamos aqui que o estopim da decadência da moral e da cultura europeia se
encontra no otimismo teórico do pensador Sócrates que acabou por embasar o erro
da metafísica, estabelecendo a crença em um mundo fictício.
Nietzsche
Uma Compreensão da Cultura do Ocidente
Como Sintoma de Decadência Moral
Monografia
defendida como Trabalho de Conclusão do Curso de Filosofia, para obtenção do
respectivo título de Licenciado.
Orientador
Prof.
Ms. William Coelho de Oliveira
DFI-FAFIC
Leia na íntegra os demais capítulos também nesse Blog
Claudio Castoriadis.
Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |