segunda-feira, 23 de maio de 2011

Como fechamos os olhos para nós mesmos?

Onde as horas não passam. IV

-Pronto? Está gravando?
- só um momento.
- Olha não sei ao certo como me expressar.
-Ok, bora lá então.
- Olá! Eu me chamo Amina e como paciente dessa instituição fui convidada a falar um pouco de mim e do meu caso. Sendo assim, tentarei ser breve e espero que essa gravação de algum modo sirva pra alguém com sintomas semelhantes. Não sou santa, nem um pouco "boa menina" e detesto olhar de bom samaritano. Pelo contrário, tenho um egoísmo tão egoísta que não quero ninguém vivendo ou sentindo minhas dores.
-É...
- Eu...
- Quero deixar bem claro: Estou aqui, mas não me sinto uma fraca.
- Por isso uma palavra que não me deixa, mesmo com toda essa medicação que vocês me empurram, é a palavra grandeza.
-Reconheço que a grandeza de uma pessoa consiste na forma que ela se olha em seu espelho.  Quando olhamos no espelho sentimentos vêm à tona aos milhares. Pelo menos comigo as coisas são assim. É como se fossem demônios cercando um estandarte sagrado.
- Olha, sei que parece ridículo, mais imagino que todos temos nossos demônios, ou dito de forma menos obscura: todos nós temos sentimentos, que no fim se tornam em neuroses e as neuroses por sua vez podem ganhar outros agravantes... tipo,  fobias entende? É dessa forma que me olho no espelho todo dia: como uma garota imersa em fobias. Tenho varias ideias e teorias sobre esse assunto. Mas penso que a definição mais sucinta e precisa para o termo nesse momento é o diagnóstico do meu médico sobre meu caso. Fobias são reações emocionais e físicas a objetos e situações temidas. Sentimento de pânico, ameaça constante, horror ou terror. Reconheço que o meu medo ultrapassa os limites. E sei que tudo isso é sem sentido para muita gente. Mas, essa sou eu. E não é nada fácil olhar nos olhos de uma pessoa quando estou assim. É... Não sei se são reações automáticas que estão fugindo do meu controle. Às vezes até tento brincar com minha situação. Tento ser forte sabe? Mesmo quando sua tomada por um sentimento de vazio. Poxa, ontem mesmo falei pra moça responsável pela terapia ocupacional que nem sempre é fácil ser eu.
- Como assim Amina? Melhor dizendo: você sabe quem é realmente?
-Então, eu diria com toda sinceridade do mundo que não sei quem sou, mas sei o que não sou.
-Sabe aquele moço que acorda todo dia e vai até o último banco próximo ao jardim? Aquele de baixa estatura, de ombros contraidos e que tem dificuldade pra falar! Então, eu o vejo quase todo dia em sua rotina. Sai do quarto vai até o refeitório tomar um café não demora muito, segue para o pátio, e para em um banco, sem sombra e desconfortável. Sempre senta no mesmo banco. E por lá fica sozinho por horas e horas cantando músicas antigas até cansar a garganta. Não deixo de ficar fascinado com sua solidão.  É uma solidão diferente entende? Ele canta como se tivesse uma imensa plateia lhe cercando- é tão fascinante. E realmente ele tem uma plateia, a mais nobre que ele já teve. Como ele conseguiu isso? Simplesmente fechando os olhos. Lá no cantinho dele não existe solidão. Com os olhos fechados não existe solidão. Porém, tem sempre alguém inteligente, dono da razão, um normal por assim dizer, que o machuca. Como? Quando chega próximo e sem gritar lhe abre os olhos.
- É... Senhor Hans Von Liszt uma coisa devo lhe assegurar, não sou como ele.  Bem queria, mas os meus olhos, quando foram abertos fez com quer eu perdesse uma coisa incrível ingênua e sem malícia mesmo guardando sua luz no mais sagrado, arremessando-me de um lado para outro, despojando-me de toda minha vontade de vida, toda minha ternura.  Arrancaram minha calma quando abriram meus olhos para um mundo sem vida que enruga e racha a alma. Hoje não sei quem sou, talvez uma escultura, sem afetos, desgastada pelo tempo em um canto empoeirado miseravelmente mal quista.  Ainda assim rastejo, lenta como as horas que me pesam, eu rastejo, sem deixar de lado minhas quimeras infantís. E mesmo que meu espírito esteja decorado com sentimentos líricos que de sorte me abraçam. Deixei de ser feliz quando o “mundo de vocês” abriu os meus olhos. Agora estou acordada e mundo de vocês? Dorme feito criança, desprezando os infortúnios da vida. Doutor, antes de terminar eu tenho uma pergunta... Como fechamos os olhos para nós mesmos?



Por Claudio Castoriadis ( trecho do meu conto Onde as horas não passam)
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