sexta-feira, 11 de julho de 2025

O sonho do Homem Ridículo: Entre o Abismo de Nietzsche e a Redenção de Dostoiévski

Poucos pensadores conseguem tocar tão profundamente o imaginário moderno quanto Friedrich Nietzsche. Seu estilo fragmentário e aforísmatico, aliado a uma vida marcada pela solidão e pelo sofrimento, lhe conferiu a aura de um filósofo-poeta, cujo pensamento ecoa nas frestas da razão e nas margens da existência. Sua trajetória errante — ora pelas montanhas suíças, ora pelos labirintos de sua própria interioridade — foi também a de um gênio solitário cuja obra continua a arrebatar almas sensíveis, não apenas pelo vigor filosófico, mas sobretudo pelo tom confessional, quase litúrgico, com que aborda os dramas do espírito humano. A solidão, para Nietzsche, não era apenas condição biográfica, mas categoria existencial. Seu grito contra a metafísica, a moral tradicional e os valores ocidentais ressoa ainda hoje como um chamado ao enfrentamento das sombras que habitam o eu.

É nesse contexto, entre o pathos trágico nietzschiano e o mergulho psicológico de um Dostoiévski, que se pode situar uma leitura existencial do conto O Sonho de um Homem Ridículo. Escrito em 1877, este breve e denso relato do autor russo funciona como uma espécie de parábola filosófica, centrada na figura de um narrador que, à semelhança dos heróis trágicos da literatura e da filosofia, confronta os limites da razão e a insustentável leveza do ser. Trata-se de um homem tomado pela apatia e pela convicção de que nada importa — um niilista, talvez. No entanto, à diferença do niilismo ativo de Nietzsche, que vê na destruição dos valores um passo necessário para a criação do “além-do-homem”, o protagonista de Dostoiévski flerta com um niilismo passivo, entorpecido, que se traduz numa intenção clara de suicídio.

A narrativa, conduzida em primeira pessoa, percorre a jornada interior desse sujeito desesperado, exaurido por conflitos morais e dilemas existenciais. Após decidir tirar a própria vida, ele é interrompido por um acontecimento aparentemente banal: o encontro com uma menina que lhe pede ajuda. Incapaz de socorrê-la e tomado por um sentimento de impotência, ele se refugia em sua solitude e adormece. É nesse momento que o conto toma um rumo alegórico. O sonho que se segue é a visão de um paraíso terrestre — uma comunidade humana ideal, onde reina o amor, a paz e a harmonia entre os seres.

Esse paraíso onírico é descrito com traços utópicos e, em certo sentido, pré-lapsarianos. Não há propriedade, egoísmo, violência ou mentira. A morte é acolhida com serenidade, e a vida é celebrada em comunhão com a natureza e com o outro. O protagonista experimenta ali a verdade: os homens são capazes de viver felizes e belos sem abandonar a Terra. No entanto, sua tentativa de compartilhar essa revelação com os habitantes daquele mundo inicia um processo de corrupção. Surgem o orgulho, a divisão, a mentira, e, enfim, o primeiro assassinato. A utopia desmorona. A ciência, desprovida de ética, torna-se instrumento de alienação; o conhecimento degenera em vaidade e destruição; o paraíso torna-se um espelho da própria humanidade histórica.

Esse episódio remete a uma reflexão central da filosofia moral: a tensão entre a inocência original e a corrupção pelo saber. A alegoria proposta por Dostoiévski apresenta o conhecimento não como redenção, mas como queda. Assim como na narrativa bíblica do Éden, a consciência de si traz consigo a possibilidade do mal. A ciência, sem amor, torna-se perversão. Aqui, a crítica dostoiévskiana ao racionalismo moderno encontra ecos em Nietzsche, que via na moral racionalista uma forma de decadência da vitalidade humana.

Ao despertar, o narrador está transformado. Tocado pela experiência de sua “visão”, assume para si uma missão messiânica: propagar a verdade que viu e amar a humanidade. Sua principal lição, condensada na última parte do conto, é radical em sua simplicidade: amar os outros. Mesmo — e talvez sobretudo — aqueles que o ridicularizam.

“Amo-os a todos, e mais que a ninguém, àqueles que riem de mim. Por que amo mais a estes? Não sei, nem tampouco posso explicá-lo, mas é assim.”

Essa entrega amorosa, quase cristã, transcende a lógica utilitária e racional. É uma resposta afirmativa ao niilismo: não pela via da transvaloração nietzschiana, mas por um retorno à compaixão como fundamento ético. Se Nietzsche propõe o amor-fati como aceitação do destino, Dostoiévski sugere o amor-agápe como redenção do humano.

O Sonho de um Homem Ridículo, portanto, é mais do que uma narrativa fantástica ou um drama psicológico: é uma meditação sobre o mal, a responsabilidade, a possibilidade da regeneração e o sentido do amor em meio ao desespero. Sua atualidade reside justamente nessa tensão entre o desencanto com a humanidade e a esperança radical em sua transformação




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