Ao final de sua vida, Friedrich Nietzsche encontrava-se irreconhecível. Seu olhar, vazio e distante, parecia habitar uma esfera inacessível, alheia ao mundo dos homens e das convenções. Essa imagem trágica, muitas vezes romantizada ou patologizada, remete simbolicamente ao mito órfico de Dionísio, o deus dilacerado pelos Titãs, cujos fragmentos dispersos viriam mais tarde a ser recombinados em uma nova totalidade. A analogia com o filósofo alemão não é gratuita: sua obra, ao longo do tempo, passou por um processo semelhante de desmembramento e reaproveitamento, sendo reiteradamente reconstituída por discursos ideologicamente divergentes, muitas vezes em flagrante contradição com suas intenções filosóficas.
A crítica nietzschiana, fundamentada na genealogia dos valores e na desconstrução dos fundamentos metafísicos da tradição ocidental, propõe-se a um duplo movimento: desvelar os pressupostos histórico-morais que sustentam nossas crenças e abrir espaço para a emergência de novos modos de existência. O martelo filosófico, por ele mobilizado como instrumento diagnóstico, não visa à pura destruição, mas à auscultação dos ídolos — uma crítica imanente à cultura, à moralidade, à linguagem e, sobretudo, à razão moderna. No entanto, a complexidade e a ambivalência de seu pensamento tornaram-se alvo de reduções indevidas: Nietzsche foi apropriado por projetos autoritários, como o nazismo, que instrumentalizaram sua noção de "vontade de poder" e sua crítica à compaixão, ignorando o contexto estético e trágico que atravessa sua filosofia.
Essas deturpações, por mais graves que sejam, não surpreenderiam o próprio Nietzsche, que anteviu o destino ambíguo de sua recepção. Em *Ecce Homo*, ele afirma: "Um dia não quererão compreender-me — que me importa?". Sua escrita, marcada por aforismos, metáforas e intertextualidades múltiplas, resiste deliberadamente à sistematização. Sua intenção não era oferecer doutrinas definitivas, mas provocar deslocamentos no pensamento, abalar certezas, introduzir o trágico no campo da filosofia. Nesse sentido, pensar com Nietzsche exige abandonar o conforto das verdades estabelecidas e enfrentar a instabilidade que constitui a própria condição humana.
O núcleo estético de sua filosofia revela-se nesse gesto: a vida, mesmo em sua dimensão mais dolorosa, pode ser justificada enquanto obra de arte. Trata-se de uma reabilitação do trágico, que não elimina o sofrimento, mas o sublima, conferindo-lhe sentido e forma. Nietzsche não nega a dor; antes, propõe a sua transfiguração. Essa é, talvez, sua contribuição mais original e perturbadora: afirmar a vida não apesar do sofrimento, mas com ele — e por meio dele.
Sua loucura final, longe de ser mero colapso, pode ser interpretada como desfecho simbólico de uma trajetória levada ao extremo. À semelhança de Hölderlin, outro pensador atravessado pela chama do absoluto, Nietzsche parece ter ultrapassado os limites da razão discursiva em direção a uma forma de lucidez que a própria linguagem já não comporta. Resta aos leitores contemporâneos não apenas interpretar seus escritos, mas assumir a tarefa que ele legou: a de pensar contra os dogmas, de criar conceitos, de afirmar, mesmo entre ruínas, a potência da existência.
Claudio Castoriadis
