2.5. A Vida como Critério
Para se compreender de forma mais precisa esse
conflito de valores, essa inconciliável oposição de instintos, bom e ruim na
maneira nobre de avaliar e bom e mal da maneira do ressentido, nada mais
sensato que centralizarmos tal impasse tendo como pano de fundo a vida em sua
plenitude. Como podemos chegar a essa alternativa? É esta a concepção fundamental da filosofia
de Nietzsche palpável a partir dos textos de Assim Falou Zaratustra: a eterna, suprema afirmação e confirmação
da vida, isto é, a estreita relação do pensamento e da vida. Com isso, a
seguinte pergunta deve ser feita: até que ponto a plenitude da vida é
beneficiada pelas apreciações Bem e Mal? Para chegarmos a uma resposta
convincente seria importante buscarmos compreender o que Nietzsche entende por
vida:
A
vida mesma é essencialmente apropriação, ofensa, sujeição do que é estranho e
mais fraco, opressão, dureza, imposição de formas próprias, incorporação e, no
mínimo e mais comedido, exploração [...] a exploração não é própria de uma
sociedade corrompida, ou imperfeita e primitiva: faz parte da essência do que vive
como função orgânica básica, é uma consequência da própria vontade de poder,
que é precisamente vontade de vida.
(2005a, p.154-5).
Ora, a vida, como ressalta Nietzsche, por ativar o
pensamento se justifica quando o pensamento em resposta afirma a vida. Ou, como diz Deleuze:“os modos de vida inspiram maneiras de
pensar, os modos de pensar criam maneiras de viver.” (1981. p 17-8). À
primeira vista, mediante essa consideração, não fica difícil percebermos a
diferença vital existente nas perspectivas do nobre e do ressentido e qual a
diferença qualitativa no traço de caráter de ambos quando, sob a ótica da vida,
pensamos suas condições. Em Crepúsculo
dos Ídolos Nietzsche chega a afirmar:
[...] Ao falar de valores falamos sob a inspiração, sob a ótica da vida: a
vida mesma nos força a estabelecer valores, ela mesma valora através de nós, ao
estabelecermos valores. Disto se segue que também essa antinatureza de moral,
que concebe Deus como antítese e condenação da vida, é apenas um juízo de valor
da vida – de qual vida? De qual espécie de vida? – já dei a resposta: da vida declinante,
enfraquecida, cansada, condenada. A moral, tal como foi até hoje entendida – tal
como formulada também por Schopenhauer, enfim como ‘negação da vontade de vida”
– é o instinto de decadence mesmo,
que se converte em imperativo: ela diz: ‘pereça!’ – ela é o juízo dos
condenados [...] (2006, p.37)
Nesse contexto Nietzsche considera que é possível
detectar o homem sacerdotal como um homem sofredor, que não tem condições de
habitar a vida e no fardo de sua existência tenta superar sua infelicidade, sua
condição deplorável, sua impotência, inventando outra vida. Por isso quando
definimos a moral como condição de vida, devemos logo em seguida nos perguntar:
qual espécie de vida? Qual vida? Ou seja, nesse caso específico, pensar pela
ótica do ressentimento é viver uma condição de vida declinante, enfraquecida,
cansada, condenada. Uma espécie doente que para viver e garantir o seu lugar
depende de estratégias decadentes.
O seguinte trecho é um exemplo bastante
significativo acerca do modo de avaliação do ressentido que o Nietsche vai
denominar também como “espírito cativo” como aponta Eduardo Rezende
Melo:
A
avaliação, no entanto, é renegada pelos que Nietzsche considera como espíritos
cativos, para quem são justificadas, e portanto justas, as coisas que tem
duração, que não importunam, que nos valem vantagens e pelas quais fazemos
sacrifícios. Eles veem, em sua estreiteza de opiniões transformada em instinto
por hábito, sua força de caráter, um caráter que creem inalterável. Estão, em
verdade, presos à tradição, que ontologiza a vida [...] (2004, p. 44 )
Legislador,
Nietzsche condena a moral dos fracos por ela buscar aniquilar as paixões e os
desejos. Preciso, nosso autor especifica uma moral de vida antinatural, uma
condição de vida venerada e cultuada ainda em nosso tempo. Psicólogo, Nietzsche
ainda afirma que além dessa moral antinatural existe uma moral ou condição de
vida sadia contornada por um instinto de vida:
Darei
a formulação a um princípio. Todo naturalismo na moral, ou seja, toda moral
sadia, é dominado por um instinto de vida – algum mandamento da vida é
preenchido por determinado cânon de deves e não deves, algum impedimento e
hostilidade no caminho da vida é assim afastado. A moral antinatural, ou seja,
quase toda moral até hoje ensinada, venerada e pregada, volta-se pelo
contrário, justamente contra os instintos da vida [...] (op. cit., p. 36)
Como foi dito, Nietzsche analisou a história da filosofia
e da cultura ocidental, elaborando uma tipologia pela qual diferenciou os
diversos valores e as múltiplas morais. Dessa forma, compreender a história do
Ocidente como sintoma de decadência só é possível mediante a distinção do
normal e do patológico no discurso do nosso filósofo. Assim, duas morais
distintas chamam atenção para o olhar agudo e imparcial de Nietzsche: uma moral
sadia, dominada por um instinto de vida, e uma moral plenamente contrária às
tendências naturais do homem, contra os instintos da vida. A esta última,
Nietzsche imputa boa parte de sua obra, problematizando o caráter hediondo de
uma condição de vida. Portanto, a moral antinatural é decadente por ser uma
negação da moral sadia e mais ainda por ser uma negação da vida. Diante desse
modo defeituoso de pensar e horrorizado por essa decadente condição de vida,
Nietzsche, sob a máscara de Zaratustra, de imediato se posiciona como antípoda.
É célebre a passagem em que Nietzsche apresenta os enunciados do eterno retorno
em que Zaratustra se define a partir de três afirmações: a da vida, a do
sofrimento e a do círculo:
Eu
Zaratustra o advogado da vida, o advogado da dor, o advogado do ciclo – sou eu
que te chamo, meu pensamento de abismo. Ó felicidade! Tu te aproximas, ouço tua
voz. Meu abismo falou, minha última profundidade surge à luz! Ó felicidade!
Vem! Dá-me a tua mão!...Deixa-a! Ah! Ah, ah, ah!... nojo...nojo...nojo! Pobre de mim! (2007a, p.282)
Segundo o que foi dito até o momento, tudo leva a
crer que essa tripla afirmação na verdade se converte em uma: a afirmação
suprema da vida. Pois quando se afirma a vida, o círculo e a dor também são
afirmados, visto que afirmar a vida implica necessariamente abraçar sua
plenitude, mesmo sendo a existência uma ferida incurável.
Pois bem! Mediante essas considerações nota-se que o
tipo nobre apresentado até o momento tem uma postura favorável no tocante à
unidade de uma vida ativa. Seu pensamento é afirmativo por dizer sim à vida, em
sua plenitude e globalidade; enquanto o ressentido, por ser fraco e impotente,
ungido pelo desejo de vingança, reage condenando a vida, impondo valores
decadentes que limitam a vida, julga a vida em favor de suas aspirações mórbidas.
Com esse diagnóstico, Nietzsche compreende a vida como uma pluralidade de
forças, agindo e resistindo, em que o sujeito se exterioriza transitório e
plural.
Sendo o homem (como já foi comentado) uma entidade
histórica, em incessante devir, as essências imutáveis e verdades absolutas não
passam de fábulas. E por sua vez a moral é desmascarada em seu caráter
momentâneo de inconstante contrajogo de forças. A avaliação nesse contexto deve
ter seu caráter ativo na medida em que explora uma multiplicidade de possibilidades
e perspectivas, deixando sempre em evidência confrontações de perspectivas não
superadas.
Trazendo à luz esse legível campo de batalha onde
esses opostos se defrontam com suas particularidades, podemos até o momento atribuir
importância ao seu procedimento sob alguns aspectos: método de pesquisa
histórica e instrumento de análise psicológica, visto que seu uso é eficaz na
abordagem psicológica dos tipos nobres e ressentidos, como também especifica a
inversão dos valores no decorrer da história, dando uma ideia deveras objetiva
das possíveis transformações da moral desde sua origem, até sua estrutura
atual, como a compreendemos. Assim, nossos sentimentos, condutas, ações e
nossos comportamentos são postos sob suspeita por sermos fruto dos costumes do
nosso meio.
Entretanto, eis a pergunta cuja resposta lhe é
implícita: qual o principal objeto de análise do seu procedimento quando esboça
o movimento de reação, a grande hostilidade contra o domínio dos nobres? Ora,
de posse da liberdade inteligível, quem se beneficiou causando enfermidades e
enfraquecendo o homem para a luta, convertendo o mesmo num animal aprisionado?
Mediante o que foi exposto é palpável que o objeto
de sua crítica é a origem de todos os valores à sombra do cristianismo enraizado
no pensamento humano: uma psicologia do cristianismo, este principal objeto de
sua crítica, tendo sua origem no ressentimento com a vida. Não é à toa que em quase toda sua trajetória
intelectual Nietsche não foi brando com suas críticas ao cristianismo, chegando
a condenar de forma ampla e categórica a moral cristã em seu livro O Anticristo:
Com
isso chego ao final e pronuncio minha sentença! Eu condeno o cristianismo, faço
à igreja cristã a mais terrível das acusações que um promotor já teve nos
lábios. Ela é, para mim, a maior das corrupções, imagináveis, ela teve a
vontade para a derradeira corrupção possível.
A igreja cristã nada deixou intacto com seu corrompimento, ela fez de
todo valor um desvalor, de toda verdade uma mentira, de toda retidão uma
baixeza de alma (2007b, p.79).
Cristianismo, este que fez dos seres humanos
rebanho, um movimento de vingança contra a vida quando sufocou os valores
nobres acusando e recriminando sua ação. Por esse motivo o esforço de Nietzsche
em sondar os primórdios da cultura traçando as três etapas que no geral
correspondem à ascensão do judaísmo e do cristianismo em detrimento do domínio
de Roma, em que se instaura o triunfo provisório dos fracos sobre os fortes.
Com isso Nietzsche torna explicita sua objeção
frente à moral judaico-cristã, por entender ser esta uma negação da vida. O
juízo valorativo sobre a vida de forma tirânica estabeleceu durante a era mais
longa do seu domínio pelo Ocidente, dogmas decadentes contra os instintos
vitais. Em suma, toda moral tem um pouco de tirania contra a natureza, uma
coerção ao laisser aller (deixar ir).
Concluídas essas breves considerações acerca do seu
procedimento genealógico, deve estar claro a esta altura sua utilidade como
observação psicológica. Percebemos também que com extrema competência Nietzsche
coroou a arte da dissecação e composição psicológica na vida social das mais
diversas classes, sendo assim cultuado entre os mestres do estudo da alma. Como
foi apresentado até agora, seja como perspectiva ou como condição de vida, a
moral aqui analisada é uma forma de decadência por ser uma depreciação da vida.
Ficou
claro que a pesquisa de Nietzsche é voltada à decadência. Sua postura é a favor
da vida, seu intuito é assegurar a afirmação da vida. Cabe somente ao filósofo
seletivo, personagem tão clamado nos versos de Zaratustra, de posse desse
procedimento, tomar uma posição crítica, o que está por vir, não perdendo de
vista por nenhum instante a criação de valores. O filósofo deve não apenas
resolver o problema do valor, mas acima de tudo sua missão consiste em
determinar a hierarquia dos valores. Dessa forma, como perspectiva ou avaliação
Nietzsche sugere uma postura além da moral e como condição de vida clama por um
tipo de postura trágica, além do bem e do mal. Para tanto, é necessário
aprender a dançar e cantar ao ritmo da tragédia na afirmação do riso
dionisíaco, afirmando a vida em sua plenitude e exuberância como ensinou o
Nietzsche.
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Claudio Castoriadis |