quarta-feira, 25 de abril de 2012

NIETZSCHE: UMA COMPREENSÃO DA CULTURA DO OCIDENTE COMO SINTOMA DE DECADÊNCIA MORAL


1.     A NOÇÃO DE MORAL COMO SENTIMENTO DOS COSTUMES



E cada um organizará seu próprio caos, voltando-se
para sua vida interior esquecido das aparências
ilusórias. E cada um compreenderá que a cultura
é mais que uma simples ‘decoração da vida’
(Nietzsche,
Considerações Extemporâneas)


Ao adotar uma postura para além do bem e do mal, Nietzsche joga de forma paródica e sarcástica com os até então cultuados ideias da humanidade. Em suas reflexões ele descreve os conflitos da vida moral em termos que para muitos parecem exagerados, talvez pela sua pretensão em ser o primeiro a problematizar até que ponto os valores morais deformam a cultura de seu tempo. Disso decorrem suas contundentes críticas àqueles que falharam na análise da moral até então.
Assinalando um ponto de vista contrário aos costumeiros preconceitos morais, coerentemente, Nietzsche se posiciona de forma “extra moral”, “supra moral” ou “extemporânea”, ao contrário do que fez Kant, que denuncia as falsas pretensões ao conhecimento, mas peca por não colocar em causa o ideal de conhecer: se por um lado denuncia a falsa moral, por outro lado falha em não questionar as pretensões da moralidade nem da natureza nem da origem dos valores. Ou seja, ele critica aqueles que misturam domínios e interesses da razão; mas em seu discurso os sagrados domínios permanecem intactos e os interesses da razão preservados a sete chaves quando estrutura seu imperativo categórico: a verdadeira moral, a verdadeira religião. Por isso seria prudente perguntar: encontrou Kant a ideia de um filósofo legislador, como pensou o Nietzsche?  Não resta dúvida que nesse caso Kant não pôde superar as armadilhas da moral, justamente por ter invocado um estranho fator da razão de ordem transcendental.
Seguindo suas críticas para com aqueles que falharam em suas pesquisas, Nietzsche prossegue questionando a moral do dever shopenhaureriana, visto que este fracassou quando buscou um novo fundamento de uma moral universal no sentimento de compaixão. Como a vida é dor, segundo ele, a caridade para com o outro é antes de qualquer coisa participação de sua dor, ou seja, piedade, compaixão. Dessa forma, nem Kant nem Schopenhauer foram felizes em suas análises da moral, pois, segundo Nietzsche, eles tiveram a pretensão de encontrar e reformular as apreciações da consciência comum e mais imediata. A partir daí, ainda gravitaram em uma posição moral, solidamente fundada frente ao instinto divino infalível da consciência humana.
Cada filósofo, segundo Nietzsche, pensou ter fundamentado a moral. Porém, todos os pensadores conheciam os fatos morais apenas superficialmente e eram mal informados. Ou seja, faltou aos grandes pesquisadores o que nosso autor vai denominar de sentido histórico e, em consequência disso, a moral era tida como dada, faltando assim a suspeita de que ali havia algo problemático. Evitando cometer o mesmo erro, Nietzsche dá a receita de sua análise logo no prefácio do seu precioso livro, Genealogia da Moral:
Por fortuna logo aprendi a separar o preconceito teológico do moral, e não mais busquei a origem do mal por trás do mundo. Alguma educação histórica e filológica, juntamente com um inato senso seletivo em questões psicológicas, em breve transformou meu problema em outro: sob que condições inventaram os homens para si os juízos de valor bom e mal? (Nietzsche, 1998, p, 9)
O que Nietzsche denuncia aqui de preconceito teológico implica na postura adotada pelo mesmo: uma posição para fora da moral, um alerta para vivência dos valores irremediavelmente comprometidos pelos preconceitos morais. Ou seja, qualquer tipo de sentimento que gravite na órbita dos preconceitos morais tem que ser posto sob suspeita. Como? Mediante qual método? Nesse sentido o aforismo é bem claro: uma análise psicológica embasada sobre dados históricos e filológicos. Um tipo de trabalho voltado para a coisa documentada com hipóteses cinzas. Nessa situação, Nietzsche chega a provocar seus antecessores argumentando que, eles principiavam suas pesquisas sob hipóteses que se perderam no “azul”, desqualificadas por partirem de especulações metafisicas ou teológicas.
 Em Aurora, mais precisamente no aforismo 163, escreve Nietzsche:
Se é verdade que nossa civilização é, por si mesma, algo deplorável, vocês tem a possibilidade de prosseguir com suas conclusões com Rousseau: ‘esta civilização deplorável é causa de nossa má moralidade’ ou de concluir invertendo a fórmula de Rousseau: nossa boa moralidade é causa desta deplorável civilização. (Nietzsche, 2008, p.120)
Percebe-se, pois, que nesse aforismo de 1881 Nietzsche nos oferece o argumento necessário para compreendermos o exercício de seu pensamento, sendo sua principal atividade o problema da moral. Compreender as ideias fundamentais que precedem a formação da moral foi uma das principais metas de Nietzsche. Segundo ele, onde existe uma moral existe uma estrutura de valorações, ou seja, “exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida” (Nietzsche, 2005a, p.11) Por uma questão de sobrevivência questionamos: o que é correto? O que é bom e mal? O que é justo? O que é injusto? O que realmente é necessário? O que é virtude? O que é vício? O que é justiça? O que deveras é moral? E imoral? O que é digno? Por conseguinte, o que é indigno? Enfim, podemos notar que os valores morais desempenham uma função importante em nossa vida, visto que sentimentos e ações são expostos facilitando ou dificultando nossas relações sociais. Para Nietzsche, entender uma moral é também uma tentativa de entender o poder dos costumes. Ora, sabemos que os costumes são a forma tradicional de uma avaliação e representam as experiências dos homens de outrora sobre o que eles consideram útil ou nocivo, aquilo que deveras interessa para estruturar de forma razoável uma comunidade. Mediante uma avaliação inclinada a uma tradição estabelecida ou um costume, aderimos com facilidade a certa postura moral. Assim, podemos concluir que a moral nesse contexto está atrelada ao costume, de modo que, para o pensador Nietzsche, ela é “o sentimento do costume” (2008, p 27).
Nietzsche denuncia o hábito como importante gênero de prazer, fonte de moralidade. Ora, é justamente pela facilidade que aderimos ao hábito, um valor precisamente pronto; melhor: de bom grado; pelo sentimento sereno que vigora e pela possibilidade fortificada na experiência do habitual comprovado, sendo, portanto, útil que acreditamos desse modo em tal costume com o qual podemos viver; diferentemente de todas as possíveis novas tentativas não comprovadas. O costume então se cristaliza na junção do útil ao agradável fundamentando seu caráter inclinado exclusivamente para uma postura prática, rejeitando assim, na maioria das vezes, um pensar reflexivo ou intelectual. Com isso, temos então um tipo de encanto que, ao invés de propagar uma diversidade de pontos de vista, sufoca por assim dizer o caráter dinâmico da vida limitando-a em um medíocre ponto de vista.
O encanto do costume consiste em pensarmos que tal é o nosso único meio, no qual é possível nos sentirmos bem. É pela busca da mais confiável segurança que nos rendemos por sua utilidade aparentemente única, comumente sentida por tudo um grupo ou ordem social. Porém, é justamente para esse suposto encanto que provém do hábito ou costume que Nietzsche imputa sua crítica. Ora, os costumes, até mesmo os mais rudes e duros, com o passar do tempo se mostram mais agradáveis e de bom grado. E por mais áspero, hostil ou desagradável um hábito de visar se apresente, possivelmente tais palpitações venham a se converter futuramente em uma instigante fonte de prazer. Pois bem! A hipótese de Nietzsche nesse contexto é: um objeto que outrora era acolhido de modo hostil provavelmente pode vir a se converter em objeto “sacrossanto”. Sendo assim, é importante observar a estreita relação entre ética e moral, quando estas remetem a um determinado conjunto de costumes. Nesse ponto Nietzsche deixa evidente:
Eis-nos aqui no imenso terreno de manobra da inteligência: não somente se desenvolvem e se aperfeiçoam aqui as religiões, mas também a ciência encontra aqui seus precursores veneráreis, embora terríveis; é ali que o poeta, o pensador, o médico, e o legislador de nossas cerimônias, se revestiu a pouco e pouco do atrativo do que é difícil de compreender e, quando se chegou a aprofundar, aprendeu-se a crer.   (Nietzsche, 2008, p.39)
Uma vez que Nietzsche compreendeu a moral como sentimento do costume, apreciar-se-á por meio dessa hipótese um alerta que permite repensarmos com os critérios os costumes, hábitos e tradições. Torna-se-nos evidente mediante tal observação que o costume é apresentado por Nietzsche como inconstante, longe de tomar uma postura definitiva. E por ser o hábito fonte de uma moralidade, Nietzsche circunscreve sua crítica para o sentimento aderido mediante o encanto do hábito ou costume.

Por Claudio Castoriadis ( Franciclaudio Feliciano de Lima ) 

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