1860. Um jovem professor é acolhido
com bastante êxito pela universidade de Basiléia, ouvintes eufóricos contemplam
sua aula inaugural, “sobre a personalidade de Homero” todos desejam ansiosamente
escutar as palavras do brilhante Friedrich Nietzsche, jovem que por
recomendação de Ritschl fora agraciado com a cátedra de filologia clássica,
conquistando com os devidos méritos sua cadeira sem tese nem exames. Sem dúvida
dias gloriosos e tranquilos, mesmo que breves, na vida daquele que iria protagonizar
o drama da “Morte de Deus” se consagrando para sempre como o autor de
Zaratustra. Mais de cem anos após sua morte e o seu legado ainda é centro de
exaustivas discussões. Com efeito, os conflitos acerca de sua filosofia não
apenas reafirma seu nome entre os grandes pensadores da humanidade, mas,
principalmente contribuem para pensarmos a atualidade do seu discurso.
Qualquer um que se debruça sobre um
texto de Nietzsche dificilmente não se deixa levar pela tentação de pensar com
ele; na medida em que desafios são erguidos, um após o outro, um novo aspecto
de seu discurso exterioriza sua viva sensibilidade. Não se pode desconhecer as
dificuldades de acompanhar o pensamento de um gênio que se compreendia como o
mais escondido de todos; um filósofo que contemplava o mundo como uma porta
para milhares de desertos, vazia e gélida; um mestre que fazia experimentos com o pensamento
humano feito “argila dúctil” nas mãos de
um devoto escultor, que, com inefável talento tornava belo tudo que habitava o
universo de suas críticas. Não obstante, compreender seu pensamento se revela
um empreendimento extremamente ousado, palpável somente por uma íntima relação
entre autor e leitor, um eterno jogo de encanto, sabedoria e experimentalismo.
Um universo de prodigalidade se insinua quando contemplamos a grande declamação
de seu espírito. É inegável a ternura do conteúdo que dar forma a sua arte
dionisíaca, é incontestável que, dos diversos críticos, poucos ousaram
compreender Nietzsche como ele se compreendeu. E, de certo modo tal agravante é
compreensível, uma vez que o próprio tinha plena noção das dificuldades desse
audacioso empreendimento; cuja meta central era quebrantar as amarras das
ilusões nocivas á vida. Nietzsche não negava a hipótese da angustiante dor
causada pelo desencantamento aderido diante a desmistificação com o modo
tradicional de pensar a realidade. Nesse sentido salta ao olhos a vertente
corrosiva de sua filosofia que, é justamente implodir nossa forma lógica de
contemplamos á conduta humana. Eugen Rosentock-Huessy chegou a se utilizar da
expressão “disangelho” (termo cunhado pelo próprio Nietzsche) para caracterizar
os trabalhos daqueles que seriam os quatro principais intérpretes da realidade
do século XIX. Marx, Gobineau, Nietzsche e Freud, pois ambos esboçaram o
processo de desilusão da modernidade. Peter Sloterdijk por sua vez, descreve
esse processo de desilusão como “um nível de desencantamento capaz de levar á
beira de precipícios quase suicidas.” E, por esse motivo Nietzsche era convicto
de sua solidão, “muito instrutivo! Ninguém quer o que eu escrevo” (carta a
Peter Gast, 1887).
Pensar Nietzsche e a relevância dos
seus manuscritos que ainda perdura em nossos dias é pensar sobre vários
aspectos sua biografia e estilo sem perder de vista o fenômeno dionisíaco que
esboça a grandeza de um angustiado gênio, um fenômeno que acima de tudo reflete
a excessiva popularização de sua filosofia. Quem nunca se ateve a conceitos do
tipo vontade de potência, eterno retorno do mesmo, teoria das forças, grande
politica, e a morte de Deus? Caráter tão
trágico quanto o revolucionário Siegfrieud do drama musical de Wagner, o autor
de Zaratustra defensor fiel da cultura nobre e sofisticada ironicamente tem
inegável repercussão na cultura de massa. Maldição ou benção? O certo é que
poucos autores conseguiram manter o domínio de sua obra tanto na esfera
acadêmica como fora dela. Uma filosofia hermética? Um pensador contraditório?
Esteta ou um politico? Revolucionário ou reacionário? Um autor pessimista? Enfim,
até hoje Nietzsche é discutido em assembléias, livros e publicações que se
seguem ininterruptamente. Mas, afinal, não seria essa a intenção ao introduzir
na filosofia sua trama conceitual? Através de aforismos e imagens poéticas
Nietzsche não teria trabalhado o caráter experimental de sua filosofia? Os
conflitos de opiniões não seriam reflexo de uma filosofia que se dá em reflexão
incessante? Como isso é possível? Qual foi a estratégia adotada por Nietzsche?
Melhor dizendo, tinha o Nietzsche uma estratégia? Ou mais, seria possível uma
plausível resposta para essas questões introdutórias se deslocamos as mesmas
para uma teoria pragmática? Mas até, poderíamos pensar com clareza e rigor um
autor tão dramático e conflituoso? Ora, são essas as perguntas sobre a natureza
dos conflitos de opiniões que pesam em sua filosofia que nos levam a
considerar, nesse momento, todos seus escritos como resultado de um pensamento
estrategicamente brilhante que buscou legitimidade articulando um discurso não
conceitual mantendo-se em sua postura de ensaio e experimento. Sendo assim, a
luz dessas reflexões como referência preliminar, ainda é preciso enfatizar o
fio condutor de nossa pesquisa: explorar o resultado, entre tantos, do estilo
estratégico adotado por Nietzsche que, além de rejeitar o uso da linguagem
sistemática e conceitual em virtude de uma linguagem não conceitual,
possibilita uma continua renovação de perspectivas sobre sua obra legitimando
uma postura radical contrária ao instinto de verdade e suas armadilhas metafisicas.
Quando somos guiados passo a passo por seus
questionamentos, apercebemos com clareza uma sensibilidade indizível que emana
da multiplicidade dos seus escritos. A primeira tarefa para uma leitura bem
fundamentada desse complexo universo consiste em nos familiarizamos de imediato
com dois desafios: o primeiro implica em detectar as utilizações que se fez do
autor; e um segundo, de suma importância, se constrói quando reconhecemos as
dificuldades de compreensão que seus escritos apresentam em sua estrutura
conceitual; um modo de pensamento que se vale de formulações extremamente
corrosivas sustentadas por brilhantes termos que se encandeiam. É bem provável,
com isso, que, o leitor possa incorrer em graves perigos ao adentrar em um
universo tão hermético e recheado de armadilhas; onde o desanimo em se deparar
com um texto tão denso pode se agravar com a petulância em apreender com
precisão o que se insinua facilmente acessível. Com efeito, nada mais sensato
para uma segura aventura em seus manuscritos do que, antes de qualquer coisa,
desmascarar as apropriações ideológicas e com determinação lidar com as
particularidades de sua maneira de expressa-se. Avesso à ideia de um
conhecimento totalizante e unificado do real, Nietzsche exalta o
perspectivismo, isto é, uma mesma ideia analisada e compreendida pela
multiplicidade de pontos de vista, com isso, as mais diversas possibilidades de
abordamos uma problemática se concretiza mediante o perspectivismo que ganha
contorno juntamente ao questionamento do valor da verdade:
“Ainda que fossemos suficientemente insensatos para considerar como
verdadeiras todas as nossas opiniões, não desejaríamos, contudo, que fossem as
únicas; não sei por que se haveria de desejar a unipotência e a tirania da
verdade; basta-me saber que a verdade possui um grande poder” (Aurora, 507).
Com semelhante maestria o filósofo
explora o pluralismo, termo convencionalmente
atribuído ao seu pensamento que reconhece não apenas sua interpretação
filosófica como também exalta o exame estilístico e analise psicológica,
objetos de múltiplas leituras. Por esse motivo uma pluralidade de estilos
enriquece seus manuscritos. Um bom exemplo sua variedade formal e estilística
se encontra latente em seu livro A gaia
ciência onde sua escrita se alterna em diálogos humorísticos, textos
argumentativos, aforismos, poesias e parábolas concentrando densos argumentos
acerca da arte, verdade, metafisica, teoria do conhecimento, ontologia e
história. Vale lembrar que, o próprio Nietzsche chegou a reconhecer seu grande
estilo acreditando possuir “a arte do
estilo mais variado do qual nenhum homem jamais dispôs”.
Visto esses dois termos
Perspectivismo e pluralismo somado com a natureza antagônica do autor, torna-se
relevante as considerações de Muller- lauter de que não há um único
entendimento correto do pensamento de Nietzsche em um sentido definitivo e
conclusivo. Ou seja, qualquer tentativa de cristalizar convicções acerca de sua
filosofia é questionável. (Não seria essa a intenção do Nietzsche?). é compreensível
também, que, considerações desse gênero possam intimidar qualquer leitor
despreparado, porém, quando nos atemos ao experimentalismo latente no seu
estilo, esse suposto obstáculo estrategicamente se converte em estimulo.
Afinal, os constantes desafios propostos por sua filosofia esboçam o caráter
dinâmico e, por conseguinte, experimental implícito em seus textos. “Pluralista, o pensamento nietzschiano
apresenta ao leitor múltiplas provocações. Dinâmico, a eles propôs sempre novos
desafios”. Afirma Scarlett Marton.
Se assim é, não podemos deixar de
concluir que, pondo a prova hipóteses interpretativas, principalmente quando
estas pesam sobre sua obra estrategicamente inaugura um leque de pontos de
vistas quando desafia seus leitores incitando experimentos com o pensar.
A avaliação, tal como tratada nesse
contexto, tem seu caráter ativo na medida em que explora uma multiplicidade de
possibilidade e perspectivas deixando sempre em evidência confrontações de
perspectivas não superadas como resultado de uma filosofia que se dar em
constante reflexão:
“O mundo tornou-se novamente infinito para nós: na medida em que não
podemos rejeitar a possibilidade de que ele encerre infinitas interpretações”
(A Gaia Ciência – 374).
Fica desse modo explicitado que juntamente
com os termos perspectivismo e pluralismo o experimentalismo também
particulariza a filosofia nietzschiana. Visto que, o que está em jogo nessa
visão é justamente explorar confrontações de perspectivas em um âmbito de
incessante experimento. Aqui, então seria pertinente lembrar que a partir do
momento que abriu as portas para as filosofias da vida, vinculando esta a
vontade de potência, Nietzsche deixa entrever uma forte tendência naturalista e
voluntarista na sua filosofia. Por ter conferido função primordial aos
instintos vitais da natureza humana estudiosos compreendem, pois, sua filosofia
também relacionada ao termo pragmatismo. Dando uma nova roupagem para a
verdade, sua filosofia defende um radical deslocamento valorativo de tal
conceito partindo de uma determinada concepção da essência humana.
“A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção
contra ele; é talvez nesse ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranho.
A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo
cultiva a espécie”. (Além do Bem e do Mal, 4).
Nesse contexto a verdade consiste na
estreita relação do pensamento com os objetivos práticos do homem; verdadeiro
nesse ponto exterioriza o mesmo que útil, promotor da vida; uma concordância
entre pensamento e ser. Portanto, não existem fatos ou verdades, mas,
interpretações ou perspectivas. Nessa radical e precisa guinada vitalista, as
leis lógicas e cientificas, são critérios e esquemas de nossas interpretações
do real. Localizando essas características da verdade em seu contexto
essencialmente naturalistas , voluntarista, vitalista ou até mesmo pragmática;
é certo que, o conhecimento, por sua vez, em Nietzsche pode ser abordado em seu
caráter biológico, onde a verdade antes de ser um valor teórico é precisamente
servidora da vida, instrumento de um determinado tipo de animal que necessita
conserva-se, e, principalmente desenvolve-se; e como o individuo precisa viver
em sociedade e comunicar-se o
conhecimento em Nietzsche também ganha seu sentido gregário:
Não temos nem um órgão para conhecer, para a verdade: nós sabemos (ou
cremos, ou imaginamos) exatamente tanto quanto pode ser útil ao interesse da
grege humana, espécie: e mesmo o que aqui se chama “utilidade” é afinal, apenas
uma crença, uma imaginação e, talvez, precisamente a fatídica estupidez da qual
um dia pereceremos”. ( A Gaia Ciência, 354).
Sendo assim, perante tais
esclarecimentos, cabe a nós leitores reconhecer a ousadia estilística de um
filósofo que soube estrategicamente garantir, num nível mais profundo dos
demais intelectuais, a potencialidade de sua obra ao inflamar um preciso debate
acerca do valor da verdade reconhecendo nesta a sua forma mumificada,
metafisica e fixa. Desde o início de seu percurso intelectual a recusa de uma
verdade em si foi uma constante em seu pensamento; Nietzsche não se deteve com
demonstrações lógicas e com estruturas sistemáticas. A questão do valor é algo
a ser julgado de acordo com a medida e exigência de quem o veste. Seja como
for, o mais importante nesse contexto é seguir simpateticamente nosso caminho
encontrando um refugio para as horas de inquietação, sentirmo-nos em harmonia
com nossas perspectivas, liberto dos grilhões e das amarras moralistas nocivas
a vida. Cada um de nós deve ser responsável e, acima de tudo, dar conta de seu
próprio juízo jamais, sobre hipótese alguma tirar semelhante coisa de outro.
Mesmo sendo este um erro, mesmo que fosse uma mentira. Enfim, ao lançarmos os
olhos sobre este extraordinário autor, em todos seus detalhes e conflitos,
tomamos consciência que, este personificou com genialidade e loucura a
desoladora opinião que os grandes intelectuais e artistas são geralmente
desprezados e negados pela sua geração. Dramático e, poeticamente conflituoso,
em vida Nietzsche expressou ressonâncias com o culto a Dioniso, almejando a
divina primavera incorporada no forte estupor da vida, onde da mais elevada
alegria brotou o grito de horror, ritmado pelo cântico de Zaratustra- talvez
por esse motivo, seu discurso ainda é gritante sem desfalecimento, ou talvez a
relevância de sua filosofia se deve em muito a doçura do seu espírito que
apaziguava seu pensamento intimidante como certa vez escreveu Malwina de
Meysenburg : quanto sua natureza amável e
generosa equilibra sua inteligência destruidora.
Foi principalmente no reino encantado
do universo acadêmico, lugar sustentado por densos e exaustivos sistemas- onde
um otimismo teórico buscava a verdade a qualquer custo- que a filosofia de
Nietzsche foi mais densa e corrosiva. Enquanto todos buscavam um mundo
plenamente calmo e esclarecido, os versos de Zaratustra irradiavam uma espécie
de morte do vago causada pela desilusão frente uma razão decadente e apática,
que escraviza e destrói. Nietzsche, uma filosofia de conflitos, uma sutil
desconstrução do ser, justificável principalmente quando levamos em conta sua
maestria estilística responsável pelas múltiplas imagens ao seu respeito que,
para, sua surpresa e horror, vigora sem discrepância tanto na esfera acadêmica
como fora dela. Conflitos, que, de certo modo vão de encontro ao principio
hermenêutico de Heidegger, onde todo texto filosófico carrega em si uma margem
de não pensado. E, se tratando em especial dos textos de Nietzsche, apercebemos
que este compreendeu bem mais do que chegou a exprimir, presenteando a
humanidade com um labirinto feito de diversos e profundos escritos de caráter
estrategicamente perspectivista, pluralista e experimental.
Referencias bibliográficas
Nietzsche. F. A Gaia Ciência. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: companhia da letras, 2001.
________,Além do bem e do mal. Trad.
Paulo César de Souza. São Paulo: companhia das letras, 2005.
_________,Aurora. Trad. Mario Ferreira
dos santos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
Por Claudio Castoriadis. (Franciclaudio
Feliciano De Lima)
-Esse artigo foi elaborado em maio de
2008, com o intuito de ser utilizado futuramente como recurso didático na
disciplina de Filosofia. Se for utilizado por outros, por favor, não deixem de
mencionar a fonte.
Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |