NICOTINA
Um pouco desnorteada observo pela porta do meu quarto que a fila de pacientes para o único telefone desta ala está tranquila. Estranho, pouca gente querendo manter contato com o mundo lá fora. Pelo visto o mundo real não está sendo tão requisitado hoje. Deve ser por conta do horário. Depois do almoço, enquanto muitos vão dormir outros preferem alguma distração: Escrever, pintar, varrer seus quartos, ou se divertir em um descontraído jogo de baralho. (Aqui tudo é objeto de aposta, roupas, cigarros, tampas, chapéus, quem vai lavar os pratos). Fora os que se encontram no grupo de terapia. Cada qual buscando “matar” o tempo como pode. No fim das contas todos são assassinos que nunca fizeram uma vítima. Por que o tempo ainda é o mesmo insaciável as concupiscências humanas. É seu maior prazer vislumbrar como paisagem nossa impotência e lembra-nos de nossa falta de grandeza. Quem somos perante tal monstro? O que deve ser feito perante o fatídico tempo? Eis, então, uma questão que certamente resolvida traria uma possível harmonia ou correlato do sujeito e o tempo. Maldita assassina que sou sempre escrava de uma vitima que me conduz feito um fantoche. Nesse caso eu me pergunto: quem mata quem? Quem é a vitima? Quem é o culpado? Santo Deus, a vida é uma aventura absurda.
Hoje não vou servir na terapia ocupacional. Espero que minha desculpa do resfriado tenha sido bem aceita pela minha orientadora. Se não, paciência. Ela tem que entender que assim como os demais pacientes, também tenho meus dias de crise. Hoje acordei mais tarde, além do café da manhã perdi o horário do almoço. Não é bom, sei disso. Mas, não tem problemas, meu corpo ainda tem nicotina e a cantina geralmente é aberta o dia todo. Devido ao meu trabalho voluntário, que modesta parte é bastante eficiente, tenho crédito naquela espelunca. Eles sabem de minha capacidade intelectual. Não é a toa que sou sempre a escolhida para apresentar o local quando autoridades politicas tiram um tempo para visitar a instituição em um ato de benevolência medíocre que já não engana nem os pacientes mais chapados daqui. Mas faço minha parte, com a cabeça erguida, mesmo não acreditando neles, uso de minha retórica para embelezar cada pedaço sujo desse lugar. Porcos narcisistas- Espero nunca ser tragado por toda sua fome burocrática.
Em pouco tempo tomo um banho e troco de roupas, o vento toca minha face e sutilmente algumas folhas secas adentram o quarto. Pelo visto hoje a madrugada promete um frio daqueles. Por isso, antes de sair deixo a vista, sobre uma cadeira meu antigo casaco de veludo grosso, luvas e meias de algodão, para assegurar uma boa noite de sono. Alguns acessórios são bem mais eficazes que uma porrada de medicação para dormir. Pelo menos assim ainda sei que estou no comando. Posso fumar um cigarro e sentir a nicotina correndo pelo meu corpo, posso morrer sabendo que um dia tive uma vida. Consciente, longe de artifícios químicos. De química basta a nicotina- já é o suficiente. A nicotina é a arma de muitos aqui para matar o tempo. Principalmente a minha.
Por falar em nicotina esses dias fiquei sabendo seu efeito devastador em nosso organismo. Uma senhora do concelho nacional de medicina veio da uma palestra na sexta passada. Detalhe, a palestra era ótima, mas a moçada da plateia, a grande maioria, de vez em quando acendia um cigarro. Imagina só, uma sala fechada cheia de pessoas mal arrumadas com cheiro sufocante cada uma com seu cigarro na boca. Será que a medica estava no canto certo e na hora certa para trabalhar sua ajuda sem preço? Enfim, o tema da palestra foi sobre a ação da nicotina no organismo. Como essa porra toda trabalha em cada parte do nosso corpo. Segundo especialistas, a maneira mais comum de levar a nicotina e outras drogas para a corrente sanguínea é pela inalação, ou seja, fumando. Temos que tragar toda essa porcaria para os pulmões. Os pulmões são revestidos por milhões de alvéolos, que são as minúsculas bolsas onde ocorre a troca de ar. Esses alvéolos fornecem uma enorme área de superfície (90 vezes maior do que a da pele) e devido a isso fornecem um amplo acesso para a nicotina e outros compostos-Um prato cheio para nossa destruição. Uma vez na sua corrente sanguínea, a nicotina segue quase que imediatamente para o cérebro. Depois da primeira tragada a nicotina leva segundos para alcançar o cérebro. Embora a nicotina aja de várias maneiras diferentes pelo corpo, e cada corpo é peculiar, a atuação dela no cérebro é responsável pelas sensações "agradáveis" que alguém sente quando fuma, em um período de 10 a 15 segundos após a inalação, a maioria dos fumantes está sob os efeitos da nicotina. Vale lembrar, que a nicotina não fica muito tempo no corpo. Pois é, Sua meia-vida é de cerca de 60 minutos, o que significa que seis horas após um cigarro ter sido fumado, apenas cerca de 0,031 mg do 1 mg inalado continua no corpo. Mas já é tarde o estrago depois de feito faz com que o infeliz ganhe mais um problema pra se preocupar. Depois de um trago as coisas se invertem e o assassino do tempo passa a ser vítima do seu artificio. Aquela que seria uma arma para um crime perfeito se volta a favor de nossa destruição. E o tempo? Apenas continua esmagando um fraco adversário asperamente.
Por Claudio Castoriadis ( trecho do meu conto Onde as horas não passam)
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