segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Um grande bailarino
Claudio Castoriadis
A vida é uma tragédia para
Aqueles que sentem e uma
Comédia para aqueles que
Pesam”

La bruyére

É impressionante como ainda em nossos dias Nietzsche é o autor que da mais sentido a palavra “personalidade”; um  pensador trágico, como poucos na história da filosofia, seu nome completa o quadro dos grandes gênios que vagaram atormentados pela vulgaridade do seu tempo fazendo de sua arte referência  intelectual para as várias gerações que certamente se confrontaram com suas ideias. A magia de sua arte deriva da mesma época que vagaram outros que vagaram outros tantos gênios, os chamados “Deuses malditos”: Van Gogh, Baudelaire, Rimbaud, Dostoievisk, Nerval, Strinderg entre outros; mártires da beleza que fizeram os fins do século XIX um período sensivelmente demoníaco. Ao incorporar poeticamente a postura trágica por excelência, seu pensamento não apenas encanta como desafia por está sempre suscitando novas interpretações. Desde sua crise de Turim a súbita repercussão da sua obra inflamou ao longo dos anos as mais variadas interpretações: seja reduzido a frases de efeito nos meios acadêmicos; ou até mesmo cultuado no senso comum, alheio a opções doutrinárias e intelectuais. Comovedor e grande com toda sua simpatia e desmensura dionisíaca o mestre do eterno retorno, como assim ficou conhecido, surge para nós imerso em sua incomensurabilidade trágica eivado de uma trama conceitual extremamente poética. Para tanto, vale lembrar que, o ambiente pessoal marcado pela solidão e enfermidade em muito contribui para o envolvimento de sua biografia e estilo numa aura de encantamento e martírio estruturando assim um harmonioso mosaico cujo apelo chega muitas vezes a lembrar a cativante figura de dom Quixote, ridículo, alucinado, angustiado, inquieto e sempre torturado por conflitos pessoais.

Para se compreender e sentir a gigantesca empreitada em que se aventurou o poeta-filósofo lembremos do pensador Empédocres. Este que, buscando o significado da terra em sua plenitude, atirou-se no fundo do Etna. Nietzsche, por sua vez tragicamente seduzido por tal destino, encontrou seu Etna em densos e enigmáticos problemas, aos quais voluntariamente se jogou, em seu alegre e consentido fim. Considerado como último dos filósofos modernos e o primeiro filósofo pós- moderno, Nietzsche derramou sobre a humanidade todo o indizível encanto de suas críticas na forma de breves aforismos estabelecendo um tom deverás “singular” marcando indelevelmente a trajetória da existência-humana-no-mundo. Assentando os pilares do seu pensamento em um discurso precisamente cosmológico, buscou re-traduzir o homem na natureza não em um sentido “qualitativo”, porém num sentido “quantitativo”, homem e natureza, unidade do pensamento e da vida. Por esse motivo encontramos em Nietzsche uma filosofia da natureza.

Assim compreendido, para o leitor não especialista desorientado pelo dilúvio de informações sobre o poeta filósofo, um acesso mais justo, se assim ousamos dizer, para seu pensamento seria considerar sua vida e obra como sendo os dois lados da mesma moeda, uma autobiografia sentimental, um tipo de romance escrito com maestria, estrategicamente feito por “verdades sangrentas”. Mas afinal, no caso de Nietzsche não se trataria necessariamente de uma tragédia? Ora, por mais estranho que possa parecer não é fato que em Nietzsche encontramos paixão, fúria, dor, medo, angústia, poesia e lutas? Ou seja, uma miscelânea de conflitos que evidenciam uma esfera sombria e heróica tipicamente trágica? “Pensar sua vida e obra como um trágico-romance” eis uma instigante proposta.

É evidente que tal iniciativa seria motivo de piada e não encontraria eco nos frios corredores acadêmicos, e certamente passaria despercebida no senso comum. Entretanto, seria oportuno lembrar que não se trata aqui de instaurar uma nova tese acerca da filosofia nietzschiana. Muito menos de explorar algum tipo de romantismo evidenciando especificamente as relações entre gênio, dor e loucura. Pelo contrário, em respeito a rigidez de tal pensamento, o mais sensato seria renunciar de imediato qualquer ambição desse gênero e colocar ensaisticamente uma solução poética para um contato introdutório na atmosfera densa e contundente do solitário filósofo-poeta de Sils Maria. Enfim, seja na forma de romance ou como uma tragédia: o que não podemos deixar passar em branco é a beleza da trama nietzschiana, esta assegurada por sua sensibilidade, própria de um grande espírito que transpirava poesia. Em Nietzsche tudo era poesia, de modo que o perfume do trágico desde sempre apaziguava sua fúria; sua fala, suspiro e apelo depois de cada crise derramavam-se como uma incrível força primordial que outrora estava represada. É fascinante, delirante- como é homérica a glória que para muitos ainda vinga na ferida do seu existir. Como é reconfortante a luz de sua poesia que não perde seu encanto no instante, no declínio do tempo inflamado na ferida do existir. Pérfida? Talvez ditirâmbica de alguém que viveu tão próximo da morte sem jamais deixar de professar a exuberância da vida: Nenhuma dor pode nem poderá me induzir a um falso testemunho contra a vida como a conheço. (Carta a Malwyda Von Meysenbug, 1880).

A nostalgia da Grécia e a paixão pelos heróis trágicos que desde cedo palpitava no coração do jovem Nietzsche despertava não apenas seu sentimento aristocrático, como fazia aflorar seu fascínio pelo combate “nas alturas”. Dito de outra forma: sondar sua vida e obra é aceitar o convite para testemunhar um espetáculo de primeira grandeza: Nietzsche-filósofo contra Sócrates-Platão, Nietzsche-poeta contra o perfume romântico de Shopenhauer, Nietzsche- músico contra a doença de Wagner e um Nietzsche-psicólogo contra a moral judaico-cristã. Seja sobre a máscara de um artista metafísico, sobre a frieza cientifica, ou ainda no consolo das precisas sentenças de Zaratustra, para Nietzsche cada combate era extremamente desgastante afinal, não se tratava simplesmente em duelos com gênios, referência literária ou personalidades históricas, porém, de monstruosos e profundos abismos, e contra estes, sempre cauteloso Nietzsche tomava as devidas precauções: “quem combate monstruosidades deve cuidar para que não se torne um monstro. E se você olhar longamente para um abismo, o abismo também olha para dentro de você”. (Além do bem e do mal, aforismo 146).

Intimidante? Ora, é o mínimo que podemos pensar tendo em vista essas considerações. Apaixonante? Mais ainda, visto que, por intermédio dos seus livros e cartas, somos transportados em maravilhosas ambientações, lugares, que funcionavam como pano de fundo dos mais intensos combates do autor de Zaratustra.

Trágico? Certamente, afinal a sociedade de seu tempo não fazia ideia do desgaste físico e psicológico do solitário gênio que nela vivia atormentado e desgastado pelos mais densos combates espirituais. Nem é preciso lembrar que nesse caso a dor torna-se inevitável, porém Nietzsche ainda impressiona por reivindicar da dor seu caráter pedagógico, expressando num tom tipicamente épico sua dor como sinonimo de martírio, triunfo e glória. “Apenas a grande dor, a lenta e prolongada dor, aquela que não tem pressa, na qual somos queimados com madeira verde, por assim dizer, obriga a nós, filósofos, a alcançar nossa profundidade...”

Sombrio? Ora, o aspecto helenístico-trágico durante toda sua vida pesou em sua concepção de mundo; por tal motivo não é de se espantar que a Grécia tenha ensinado para o senhor Nietzsche que onde pairar o instinto dionisíaco, o lado obscuro e tenebroso da vida não pode ser negado.

Irreverente? É o mínimo que podemos pensar de um sábio que, do alto de sua “montanha”, riu de todas as tragédias, de todos os mestres, e visivelmente embriagado por sua sabedoria peculiar, riu de si mesmo. Um grande bailarino que fez da vida uma obra de arte, um risco permanente, e passeando pela infinita corda do devir, sem plateia, nem porto seguro, permanece quieto em seu velho meio-dia.

Enfim, vista de perto a vida de Nietzsche, para retomar um pensamento de La Bruyére, foi uma tragédia pela forma como a sentia e mais ainda, uma comédia frente a desmensura do seu pensamento; solitário e incompreendido, seu desespero sem reservas velava seu pranto abraçando-lhe com suas asas luminosas.  E, assim como o brilho de Apollo ostentava grandeza e divindade, em Nietzsche encontramos intimidante luz: a mesma que banhava os guerreiros homéricos; e da mesma forma que Heitor ficou aterrorizado com a luz que brilhava como sol nascente no corpo de Aquiles, naturalmente muito dos contemporâneos de Nietzsche ainda hoje são tomados por semelhante desconforto.



Referencias bibliográficas

Nietzsche. F. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_________,Além do bem e do mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

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