Reale Júnior: “Novo Código Penal tem falhas insuperáveis”
Ex-ministro da Justiça alerta para erros graves do anteprojeto que prevê mudanças como a liberação da eutanásia, o perdão a crimes cometidos pelo MST e a perseguição a jornalistas
Carolina Freitas
Representantes
do Ministério Público, da Defensoria Pública e da Ordem dos Advogados
do Brasil reúnem-se nesta segunda-feira em São Paulo para um manifesto
em defesa do Direito Penal – açoitado em anteprojeto criado sob a batuta
do presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). A proposta foi feita
por uma comissão de juristas indicados por Sarney para reformular o
Código Penal em um prazo de seis meses e traz novidades tão preocupantes
quanto a liberação da eutanásia, o perdão a crimes cometidos por
movimentos sociais e a volta dos aspectos mais autoritários da finada
Lei de Imprensa.
O
anteprojeto foi concluído em junho e a intenção de Sarney é colocar a
matéria em votação já em outubro. Principal voz crítica à proposta, o
ex-ministro da Justiça Miguel Reale Júnior afirma que a proposta traz
itens mais do que inconsistentes: inconstitucionais. “O anteprojeto
liquida com o Direito Penal”, afirma ao site de VEJA o professor titular
da Universidade de São Paulo e um dos maiores nomes do Direto Penal do
Brasil. “O projeto é inaproveitável. Se quiser uma coisa séria, tem de
fazer tudo de novo. Há falhas e deficiências técnicas insuperáveis.”
Reale Júnior
afirma que José Sarney apressou a elaboração do anteprojeto para
cumprir uma agenda positiva em sua gestão e compara o presidente do
Senado a Justiniano, que, no comando do Império Bizantino, formulou um
sistema de leis que garantia poder ilimitado ao imperador. “Mas
Justiniano se preocupou com o conteúdo, fez o digesto, que quer dizer
por em ordem. Sarney faz o indigesto, pôs em desordem.”
O Ato em
Defesa do Direito Penal acontece a partir das 19 horas desta
segunda-feira no Salão Nobre da Faculdade de Direito da USP. Ao final do
encontro, as entidades vão elaborar uma nota a ser enviada para o
Senado pedindo a suspensão da tramitação do anteprojeto. Abaixo, os
principais trechos da entrevista concedida por Miguel Reale Júnior ao
site de VEJA:
Quais são os pontos mais críticos do anteprojeto do Código Penal? O
projeto apresentado pelo senhor Sarney está repleto de impropriedades.
Transforma, de maneira inaceitável, conceitos fundamentais do direito
penal, como os de coautoria, tentativa, dolo e culpa - o que torna o
texto incompreensível. Há a criminalização de várias condutas de forma
errônea, a formulação de tipos penais insuficientes e uma absoluta
desproporcionalidade na fixação de penas. O anteprojeto libera de forma
grave ações como a eutanásia.
Qual é a posição da comissão a respeito da eutanásia? Dá-se
o perdão judicial à eutanásia quando praticada por parente, se a vítima
estiver em estado grave, e se dispensa que um médico ateste esse estado
terminal. A decisão se dá apenas pela percepção do parente,
independentemente de qualquer diagnóstico médico. Você pode matar a
vítima por compaixão que vai ser perdoado. Todas as propostas anteriores
previam que, nessas circunstâncias, a pena fosse diminuída e não que
haveria perdão judicial.
Há posições perigosas também em relação à imprensa e aos chamados “movimentos sociais”? Sim.
O anteprojeto traz algo muito pior que a Lei de Imprensa, que já era
considerada um entulho autoritário. É gravíssimo: a difamação comum tem
um ano de pena mínima, mas, se quem a praticou foi um jornalista, por
meio de imprensa, a pena é de dois a quatro anos. É uma pena oito vezes
superior ao que previa a Lei de Imprensa. Além disso, o projeto diz que
os atos de terror praticados por movimentos sociais em reinvindicações
de seus interesses não serão considerados crimes. É uma loucura.
O senhor vê alguma forma de salvar o anteprojeto ou é preciso começar do zero? Os
erros são tão graves e repetidos que não há possibilidade de
aproveitamento, de fazer correções, emendas. Há um conjunto sem nexo, um
conjunto normativo destituído de qualquer lógica ou sistema. São falhas
e deficiências técnicas insuperáveis. Se você se espanta com um artigo,
leia o seguinte. Fica cada vez pior. É preciso começar o trabalho do
zero. A pobreza técnica é de tal ordem que só se pode rejeitar
globalmente o projeto. Há uma imensa preocupação, tanto que todas essas
entidades se uniram agora para pedir o sobrestamento da tramitação.
Querem votar no Senado em 23 de outubro. É uma irresponsabilidade.
Há pontos inconstitucionais no anteprojeto? Sim.
Ele viola o principio da proporcionalidade e da taxatividade, ou seja,
criam-se crimes sem o menor critério. Por exemplo, o anteprojeto fala no
crime de gestão fraudulenta de instituição financeira e estabelece que a
gestão é fraudulenta quando se pratica ato fraudulento na gestão da
instituição. Isso é tudo. Ora, um diretor que atesta a presença de um
funcionário faltoso comete um ato fraudulento. Mas isso não tem nada a
ver com a descrição do crime de gestão fraudulenta, que implica pôr em
risco a instituição financeira. Faz-se uma generalidade. No caso da
eutanásia também há inconstitucionalidade, pois se viola o direito à
vida.
Um
dos integrantes da comissão, o doutor René Dotti, da Universidade
Federal do Paraná, retirou-se do grupo antes da conclusão dos trabalhos.
Por quê? Ele trabalhava na parte geral do Código, que é uma
parte central, em que se conceitua o que é estado de necessidade, dolo,
culpa, tentativa e coautoria. Essa parte ficou entregue a um advogado e a
um promotor que são desconhecidos sem a menor tradição ou contribuição
na área. É uma parte delicada, que exige muito preparo. Eles mexeram no
que não sabem.
Como o Congresso responde às críticas do senhor? O
senador Pedro Taques (PDT-MT), sem argumentos para responder às
críticas, diz que esta é uma posição de São Paulo e que eu estou ferido
por não ter sido escolhido membro da comissão. Ele não me conhece. Eu já
fui membro de várias comissões, já sai de comissões quando se tentou
precipitar o processo, já inscrevi o meu nome na legislação brasileira,
não estou atrás disso. Estou atrás de preservar o Brasil, por isso o ato
se chama Ato em Defesa do Direito Penal, porque o anteprojeto liquida
com o Direito Penal.
Da instalação da comissão até a conclusão do trabalho passaram-se seis meses. É pouco tempo? Sim.
Houve pressa na elaboração, o que contraria a tradição do Direto
brasileiro. Obras dessa natureza sempre foram objeto de um anteprojeto
que foi publicado, recebeu sugestões, passou por uma comissão revisora.
Agora foi tudo a toque de caixa. Não é assim que se faz Código Penal.
Por que a pressa? Por
causa da chamada agenda positiva do Sarney. Ele constituiu comissões
para fazer o Código de Processo Civil, o Código Eleitoral, o Pacto
Federativo, a Lei do Consumidor e o Código Penal. Ele quer ser o novo
Justiniano, mas Justiniano se preocupou com o conteúdo e fez o digesto,
que quer dizer por em ordem. Sarney faz o indigesto, pôs em desordem.
Ainda há como reverter a situação? O
caminho é a sociedade se mobilizar, pressionar para que o anteprojeto
não siga adiante. Não se pode premiar as vaidades, seja do presidente
Sarney, seja do senador Pedro Taques. O projeto é inaproveitável. Se
quiser uma coisa séria, tem de fazer tudo de novo. Há vários projetos já
apresentados na Câmara dos Deputados, feitos em comissões anteriores,
que não foram aproveitados. Querem passar por cima de tudo.
O senhor foi convidado a compor a comissão? Não
e, se fosse convidado, eu jamais aceitaria ir para uma comissão dessas.
Jamais aceitaria fazer parte de uma comissão que tivesse urgência, não
tivesse calma nem um processo de elaboração pensada e reflexiva.
Qual foi o fator determinante para que o resultado do trabalho fosse tão fraco? Com
a saída do professor René, a parte geral, que é a mais complicada,
ficou entregue a pessoas sem tradição, vida acadêmica ou experiência de
elaboração legislativa. Por outro lado, buscou-se sempre o politicamente
correto. Não se faz Código Penal com jornalista à porta. Cada pérola
que se produzia se passava para a imprensa. Quando se vê o todo, o
resultado é gravíssimo em todos os títulos: nos crimes contra o
patrimônio, contra a honra, contra a vida, contra a pessoa, nos crimes
em instituições financeiras, de ordem econômica e contra o meio
ambiente.
Nesse último tópico, o que há de mais crítico? Estabelece-se
que é crime pescar ou molestar cetáceo, ou seja, golfinhos e baleias. A
pena é de dois a quatro anos. Isso já era objeto de ridicularia no
mundo. Eles não só reintroduziram uma lei revogada como aumentaram o
absurdo ao estabelecer que, se o cetáceo é filhote, a pena mínima é de
três anos e, se o cetáceo morre, a pena é de quatro anos. A consequência
natural de pescar uma baleia é que ela morra. Não se vai por no
aquário. Deve-se obviamente proteger o cetáceo, mas o absurdo é a
atribuição das penas. Outro exemplo é que, se você não prestar socorro a
um animal, a pena é de um ano; se deixar de prestar assistência a uma
criança ferida, a pena é de um mês. É preciso proporcionalidade e
racionalidade. Absurdos dessa natureza estão espalhados pelo
anteprojeto.
Que distinção o anteprojeto faz das penas para lesão culposa (sem intenção) e lesão dolosa (com intenção)? A
pena da lesão culposa é de um ano e a dolosa, de seis meses. Ou seja,
se você propositalmente quebra o braço de alguém, a pena é de seis
meses. Se, em um acidente, alguém sai com o braço ferido, a pena é de um
ano. A lesão não intencional tem o dobro da pena da lesão intencional. É
o absurdo da desproporção e da falta de critério.
Qual seria forma ideal de conduzir essa reforma no Código Penal? Para
você fazer um código, ainda mais o Código Penal, você precisa por a
cabeça no travesseiro, trocar ideias, conversar, ter reuniões, se
desgastar. É um processo lento, moroso, de idas e vindas. O melhor
método é, antes de tudo, ter tempo. No mínimo, um ano. O ideal seria de
um a dois anos.
O senhor fez parte de comissões para a criação de leis ao longo de sua carreira. Como foi essa experiência? Eu
fui chamado jovem para fazer a parte geral da Lei de Execução Penal,
tinha 35 anos. Participei de inúmeras comissões. Foi sempre algo
absolutamente envolvente e que exigia dedicação integral. Você dorme com
os tipos penais na cabeça, acorda no meio da noite, telefona para os
colegas de comissão. É algo muito delicado.
Que pontos do atual Código Penal de fato precisam ser reformados? Há
questões que poderiam ser modernizadas. O que está lá, contudo, não tem
criado problemas. Então, é melhor que fique como está. Pode-se melhorar
a definição de dolo, de culpa, mas o que não pode é piorar, como eles
fizeram. Todos os institutos importantes eles pioraram. É preciso fazer é
uma consolidação das leis penais, trazer os tipos penais que estão em
outras leis para dentro do Código, com muito cuidado, consertar o que a
jurisprudência tem feito de crítica a esses tipos penais e refazer todo o
sistema com proporcionalidade
Fonte
http://www.chrystianoangel.blogspot.com.br/