1.3. Custos negativos dos costumes
Conforme exposto, existe a íntima relação à margem
do encanto de uma tradição em que um suposto bom costume se exterioriza, na
maioria das vezes, de forma irreflexiva e submissa, mascarando um sentimento de
medo. É tal a estratégia acerca da crítica dos costumes que Nietzsche coloca
sob suspeita tudo o que é conhecido e cognoscível. Espontaneamente, o autor de Zaratustra nos convida a adentrarmos na
dimensão da sua crítica quando instaura uma ampla discussão sobre o costume e
assegura uma reflexão axiológica, analisando as possibilidades do conhecimento
e a dimensão valorativa da consciência humana.
Costumes todos temos. Valores é o que nos diferem
dos animais. Para conviver precisamos estabelecer uma série de valores. Cada
conduta nossa em sociedade deve ser ponderada na medida do possível. Devemos
decidir quais os valores que sustentaram nossas vidas. Porém o modo de conceber
a realidade pelo prisma da moralidade, tal como Nietzsche apresenta, é negativo
por rejeitar novas experiências. Desse modo, o grande problema do costume é
quando este se encontra em sua forma estática; quando não existem
possibilidades de novas práticas, novas experiências. O que, na verdade,
Nietzsche tenta mostrar é que a vida refletida na individualidade do indivíduo
não pode ser enclausurada; os sentimentos não devem ser os mesmos para todos.
Com isso a moralidade embrutece os costumes debilitando toda e qualquer forma
de avaliação.
Pois bem! Até aqui sabemos os custos negativos dos
costumes. Sabemos também de que forma o mesmo exerce seu domínio e sabemos
ainda o pilar principal que sustenta uma comunidade: o sentimento de medo.
Através
de milhares de anos viu um perigo quando o rodeava, em tudo quanto o rodeava,
em tudo quanto lhe era estranho, em tudo quanto estava vivo desde o momento em
que semelhante espetáculo se oferecia a seus olhos, imitava os traços e a
atitude que via ante si, e tirava uma conclusão sobre as intenções boas ou más
que pudessem haver atrás daqueles traços e daquela atitude. (Nietzsche, idem, p.107)
Observe-se que o sentimento de medo é pensado como
um instrumento de compreensão. Tal prática de temor desde muito tempo serviu de
sustento para a moral. O medo gera a adesão em um comportamento ordenado e
submisso. Assim Nietzsche compreende o homem em sua fragilidade tão peculiar
que, temendo o que lhe é estranho – o outro –, tira conclusões em pró de sua sobrevivência.
Dentro dessa discussão identificamos dois pontos importantes (para nossa
pesquisa): primeiro que o sentimento de medo é pensado como princípio
articulador da moral, uma vez que o mesmo principia juízos e valorações e,
segundo, o mesmo sentimento de medo tem seu caráter gregário. Afinal, os juízos
e valorações remetem a um individuo que desenvolve sua sensibilidade e
inteligência necessitando viver em sociedade.
O que dissemos até agora parece suficiente para
proporcionar algumas afirmações fundamentais da crítica nietzschiana:
a)
A
moral é tratada como condição de vida;
b)
A
condição de vida é cultivada pelo sentimento de medo;
c)
O
sentimento de medo serve de base para a moral de animal de rebanho.
Sabemos que a raiz do problema foi questionada: a
formação da moral desde sua base na adoração pelo costume, cultivada pelo
sentimento de medo. Porém, os homens não devem reprimir o medo e sim questionar
a tradição. Enfim, qual postura assumir frente à moral reduzida e fortificada
no tradicionalismo? Aquilo que efetivamente está em jogo nessa crítica consiste
no convite em adotarmos uma postura de profunda desconfiança. Pois bem!
Nietzsche tinha uma meta ao escrever Aurora.
Pois o subtítulo de tal obra delimita sua pesquisa: fundamentar reflexões sobre
preconceitos morais – a razão, a consciência, a boa opinião, amor ao próximo,
Deus, virtude, justiça, pecado, o inferno, bem e mal. Preceitos expostos, desde
sempre as piores análises.
Por quê? Ora Nietzsche responde que na presença da
moral as reflexões são podadas por se tratar uma autoridade e na presença de
uma autoridade o mais sensato durante muito tempo foi obedecer:
Desde
que o mundo é mundo, nenhuma autoridade permitiu tornar- se objeto de crítica; e chegar à
crítica moral, ter por problemática a moral, como? Não foi sempre, não é ainda
imoral? A moral, contudo não dispõe de toda classe de meios de intimidação para
manter a distância as investigações críticas e os instrumentos de tortura; sua
certeza repousa mais numa certa espécie de sedução que só ela conhece: sabe
“entusiasmar”. (Nietzsche,
idem, p. 10).
Considerando essas
afirmações compreendemos que Nietzsche incessantemente nos conduz para uma
crítica da estrutura da sociedade, visto que a mesma se mostra estabelecida no
conjunto e tem como finalidade última a proteção dos indivíduos contra os
perigos externos. A comunidade deve assim ser considerada um problema, pois para
garantir sua permanência, afirma Nietzsche, ela busca um nivelamento de juízos.
Nesse contexto, viver em comunidade significa abraçar o temor e desprezar
qualquer postura que eleve o sujeito para um patamar além da comunidade. Ações
individualistas que possam ameaçar a subsistência da comunidade são
estigmatizados como imorais, de modo que tudo que infunde temor ao próximo é
malquisto e denominado de mau.
Que fique claro: falar em moral mediante essas
considerações é o mesmo que falar em uma condição de vida. E a condição
criticada nesse momento é a condição de rebanho, um modo de pensar e viver que
implicou na redução do homem à condição de animal doméstico, amansado e
decadente. Portanto, o perigo que reside na comunidade é justamente quando ela
está atrelada à moral de rebanho. Interessante notar que essa ligação do homem com
a moral pela figura de animal de rebanho visa justamente personificar o
moralista como uma ovelha frágil e decadente que desgarrada do seu rebanho
(comunidade) e desconhece uma forma nobre de sobrevivência. Não consegue trazer
para si a responsabilidade de viver a vida em suas mais notórias
peculiaridades. Seja por má fé ou pelo sentimento de medo, ele cultua uma
memória fraca que em nada lhe permite superar as amarguras, as desilusões,
humilhações, as dores vividas, sempre amarrado a essas experiências.
Salientando o temor na moral de rebanho, Nietzsche escreve:
O
quanto de perigoso para a comunidade, para a igualdade, existe numa opinião,
num estado, no afeto, numa vontade, num dom, passa a constituir a perspectiva
moral: o temor é aqui novamente o pai da moral. (Nietzsche,
2006, p.88)
O animal de rebanho é, portanto, aquele incapaz de
acolher e aceitar as imperfeições da vida. Ele desvia o olhar evitando o lado
mais trágico da vida; está permanentemente buscando culpados por seus infortúnios;
é fraco e carrega em sua alma o desejo de vingança. Dessa forma é incapaz de
caminhar por seus próprios pés. Vive a esmo,
espera um conforto vindo de fora,
de um outro, concebido como Poderoso, Absoluto, quer seja a tradição ou uma
comunidade. O temor para o animal de rebanho será sempre o pai da moral.
Por Claudio Castoriadis ( Franciclaudio Feliciano de Lima )
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