A
relação entre a liberdade religiosa e os modernos Estados seculares tem
suscitado desde sempre controvertidas e complexas questões de Direito
Constitucional. Em recente e instigante livro, o filósofo Russell
Blackford (Freedom of Religion and Secular State) começa por dizer que a “liberdade religiosa não é apenas uma liberdade entre outras”[1], mais do que isso, se firmou como autêntica pedra angular dos modernos direitos dos cidadãos.
Não obstante
a importância da liberdade religiosa, diante da complexidade que as
relações entre Estado e religião conformam, o grande problema,
entretanto, tem sido determinar quando podemos dizer que essa liberdade
foi ou não violada (atingida de forma inconstitucional)[2].
A
jurisprudência dos tribunais, no mundo todo, tem confrontado casos —
para dizer o mínimo — constrangedores, tanto do ponto de vista jurídico,
como político e religioso. Recentemente, por exemplo, a imprensa alemã
mostrou-se surpresa com a decisão de um de seus tribunais superiores,
que entendeu que um empregado muçulmano teria sido injustamente demitido
do supermercado em que trabalhava como carregador. O trabalhador tinha
sido demitido ao se recusar, por motivos religiosos, a abastecer as
prateleiras do estabelecimento com garrafas de bebidas alcoólicas. Em
síntese, o tribunal alemão decidiu que os trabalhadores muçulmanos de
supermercados não têm a obrigação de carregar ou manusear garrafas de
bebidas que contenham álcool. O tribunal entendeu que não se poderia
impor uma obrigação contrária às normas morais da fé muçulmana, que
proíbem aos mulçumanos tocarem[3] em álcool. A ironia, segundo o semanário Der Spiegel[4],
é que, se o supermercado não contratasse o carregador por sua condição
de muçulmano, poderia ser processado por por discriminação.
Mais especificamente em consideração à neutralidade do Estado e sua relação com símbolos regiliosos, no chamado caso do véu (Kopftuchurteil),
o Tribunal Constitucional alemão teve que decidir, em 24 de Setembro de
2003, se o Estado de Baden-Württemberg poderia negar a posse de uma
mulher (Fereshta Ludin) de fé muçulmana numa vaga de professora em
escola pública por sua declarada recusa de, no futuro, abandonar o véu
muçulmano durante o período em que ministrasse as suas aulas. As
autoridades estaduais e os tribunais administrativos argumentavam que,
na condição de servidor público que representa o Estado laico, Fereshta
Ludin não poderia ostentar símbolos religiosos.
A resposta
do Tribunal Constitucional, contudo, decidindo o caso em favor de
Fereshta Ludin por ausência de autorização legislativa, parece não ter
agradado a ninguém, pois deixava em aberto a possibilidade de os
Estados-membros, desde que houvesse legislação, imporem restrições aos
trajes e aos símbolos religiosos (véus, crucifixos e estrelas de Davi)
que os indíviduos, na condição de servidores públicos, quisessem
ostentar.
Também são
comuns as dificulades em lidar com a recusa manifestada por adeptos das
testemunhas de Jeová quanto a tratamentos médicos básicos (especialmente
transfusões de sangue), não sendo incomum aos tribunais terem que
decidir se condenam ou não aqueles crentes dessa religião que recusam a
si e até mesmo a outros membros de sua família transfusões de sangue ou
outros tratementos médicos.
Nos Estados Unidos, também com base na liberdade de religião, são bem atuais e, contudo, já célebres as disputas sobre a presença de conteúdos nos currículos escolares de teorias de inspiração religiosa como o Criacionismo (teoria que consiste, basicamente, afirmação, desafiando o Darwinismo/Evolucionismo, de que o homem e os demais seres vivos teriam sido criados por Deus a menos de dez mil anos). O inusitado é que tanto opositores como defensores fundamentam sua posição com base na liberdade religiosa e, especialmente, na neutralidade do Estado. Afinal de contas, deve o Estado, com base na sua neutralidade, impedir, ou permitir, a presença nos currículos escolares do Criacionismo?
A liberdade
religiosa tem inspirado igrejas e religiões pelo mundo todo a exigiram a
sua exclusão de regras e restrições de planejamento urbano, alegando
para tanto, inclusive, exceções que, no passado, foram conferidas a
outras religiões. Seria bem constrangedor, por exemplo, que as demais
religiões pretendessem reivindicar agora um lugar para seus templos na
Esplanada dos Ministérios, em Brasília, como foi concedido à Igreja
Católica para a construção da famosa Catedral de Brasília. Fôssemos
levar às últimas consequências, como querem alguns, o princípio da
neutralidade do Estado, descartada a hipótese mais radical de colocar
abaixo uma das mais famosas obras de Oscar Niemeyer, então, ter-se-ia
que ou consentir com a construção de novos templos na Esplanada dos
Ministérios, ou transformar a Catedral de Brasília em um templo
ecumênico.
Outra
difícil questão é saber se pode o Estado intervir em seitas
apocalípticas. Em tais circunstâncias, o Estado estaria protegendo o
cidadão inocente, ou interferindo na liberdade religiosa? Pode o Estado
impedir os cidadãos, ou servidores públicos, de portarem turbantes,
burcas, ou hábitos católicos? Em tais situações, tanto denfesores como
oponentes podem alegar em seu favor a liberdade religiosa.
Todas essas questões, como se vê, estão longe de ser simples.
No Brasil,
como se percebe com a recente polêmica sobre a frase “Deus seja louvado”
nas cédulas do Real, temos sido confrontados, após a Constituição de
1988, com problemas novos, ou pelos menos com problemas antigos que
antes não se manifestavam. De fato, a discussão sobre a neutralidade do
Estado em relação à religião é um desses problemas que não se sabe se é
novo ou apenas resolveram aflorá-lo.
Além disso,
ficamos sempre com a dificuldade de responder se alguns desses problemas
merecem mesmo a intervenção do Estado. Dito de outra forma, em tais
situações não se sabe se o Estado falha quando intervém ou quanto se
mostra alheio. Devemos mesmo nos preocupar com crucifixos nas salas dos
tribunais? Devemos mesmo nos preocupar com a remissão a Deus nas cédulas
de nosso dinheiro? Os países têm dado a essas mesmas questões, ou
similares, respostas distintas.
Sendo
magistrado e atento ao fato de que esses dois últimos problemas estão
agora sob julgamento em tribunais brasileiros, não quero nem devo lançar
uma resposta definitiva e concreta sobre o problema. Fico, portanto,
apenas no âmbito de uma elaboração apenas teórica.
Em primeiro
lugar, como saber se aqueles são, no Brasil, de fato, problemas
verdadeiros? Comparados com a maior parte dos países do mundo, somos (eu
quase disse “graças a Deus”) uma sociedade relativamente tolerante do
ponto de vista religioso (e espero não ter ofendido ninguém com essa
conclusão). Quem quer que tenha vivido em outros países compreenderá o
que estou dizendo.
O simples fato de o Estado
se relacionar com alguma religião não é uma novidade no mundo. Na
verdade, isso sequer é essencial para que um país se possa qualificar
como uma Democracia. Para ficar num exemplo muito conhecido e simbólico,
na Inglaterra, uma das mais indiscutíveis democracias religiosas do
globo terrestre, a rainha ou rei, é simultaneamente, chefe de Estado e
chefe da Igreja Anglicana. De fato, segundo informação prestada pela
própria Igreja Anglicana, “a rainha e/ou rei da Inglaterra é, sem
dúvida, o membro mais conhecido da Igreja. Mas somente na Inglaterra há
um vinculo de ambas as partes, monarquia e clero, para o bem do país.
Por isso, alguns assuntos que envolvam o poder temporal, a Igreja
consulta a rainha e/ou rei e vice e versa”[5].
Como se vê, se a separação entre Estado e Igreja não garante só por si
democracia religiosa, não é simples dizer que qualquer vinculação do
Estado à religião compromete, só por isso, a liberdade religiosa.
Diante de
tão complexas situações, há muito a jurisdição constitucional e o
direito comparado vêm desenvolvendo esforços para garantir a distância e
a neutralidade do Estado diante do fenômeno religioso. De fato, por
incrível que pareça, deve-se registrar que, no direito comparado, já há
algum tempo os tribunais perceberam as graves consequências a que um
sistema de separação absoluta entre Estado e religião poderia conduzir.
Por exemplo, como percebeu a maior democracia religiosa do mundo, os
Estados Unidos, num regime de separação absoluta, não se poderia
imaginar qualquer tipo de subvenção do Estado a instituições de caráter
religioso ou confessionais sem que se colocasse em causa a neutralidade
do Estado. Ali, ficaram famosos os casos em que se questionou e se
tentou impugnar a possibilidade de o Estado subvencionar escolas
particulares confessionais com algum tipo de auxílio financeiro
(transporte escolar, material) sob a alegação de que, assim agindo, o
poder pública estaria interferindo indevidamente na liberdade religiosa.
Se a tese fosse aceita, por exemplo, escolas confessionais que
assistiam a populações e crianças carentes seriam excluídas da concessão
de ônibus e material escolar que eram fornecidos indistintamente a
todas as escolas.
Tudo
considerado, anota Jónatas Machado, naquela que julgo ser melhor
monografia sobre liberdade religiosa, em língua portuguesa, “(u)m dos
primeiros desafios jurídico-constitucionais a alcançar em matéria de
relações Igreja-Estado prendeu-se com o alargamento do âmbito normativo
do direito à liberdade religiosa. Este havia sido concebido num contexto
social e moral dominado pelo (mono)deísmo e pelo (mono)teísmo de matriz
cultural judaico-cristã, no quaro de uma comunidade (...) relativamente
homogênea”[6].
Nos Estados
Unidos, quando, na sua jurisdição inicial, a Suprema Corte teve que se
confrontar com experiências religiosas diferenciadas, o que se viu foi,
de fato, a afirmação da compreensão judaico-cristã, que estava na raiz
daquela sociedade. Assim, nos chamados “mórmon cases”, em várias
ocasiões, em que se discutia temas de interesses dos mórmons, como a
legitimidade da poligamia, a Suprema Corte, apesar de ter afirmado o
importante princípio da imunidade de coerção em matéria de crença
religiosa, acabou considerando legítima a proibição de determinadas
condutas religiosamente motivadas, designadamente quando as mesmas eram
tipificadas como crimes. Entretanto, como explica ainda o excepcional
professor da Universidade de Coimbra, “num quadro de crescente
diversidade religiosa, houve necessidade de construir o conceito de
religião num nível mais elevado de generalidade, de maneira a estender a
sua protecção a formas de expressão religiosa mais recentes e
inconvencionais e a acomodar na esfera pública. Além da liberdade
religiosa estava em causa a própria garantia da neutralidade estadual
(do Estado")”[7].
Mesmo nos
Estados Unidos, pois, “a tendência tem vindo a ser a da gradual
superação das aspirações de separacionismo estrito, embora sem nunca
chegar aos modelos de coordenação que têm vindo a caracterizar uma boa
parte dos países europeus. Em vez de pretender edificar um inexpugnável
muro de separação entre a Igreja e o Estado (“wall of separation between church and State”), a
jurisprudência constitucional americana tem procurado acomodar o
fenômeno religioso numa sociedade caracterizada pela sua importância e
diversidade, pelo gradual aumento da actividade regulativa (...) e pela
afirmação da igual liberdade religiosa como valor fundamental. A
separação das confissões religiosas do Estado surge cada vez mais, não
como um fim em si mesmo, mas como um corolário estrutural de
determinadas finalidades constitucionais substantivas, como sejam a
liberdade religiosa individual e colectiva, o princípio da igualdade e a
protecção de uma esfera de discurso público aberta e plural. Estas
tanto podem impor ao Estado que se mantenha numa posição de rigoroso
distanciamento e neutralidade perante o dissenso interconfessional, como
exigir dos poderes públicos a adopção de medidas positivas no sentido
de tornar possível, ou simplesmente viável em termos razoáveis, o livre
exercício da religião, em condições de igualdade, por parte de
indivíduos e de grupos”[8].
Processa-se ali, ainda que de forma não linear e com alguns sobressaltos, a chamada establishment clause (a Primeira Emenda estabelece que o Congresso não poderá fazer nenhuma lei que não respeite “an establishment of religion”. Para tanto a Suprema Corte desenvolveu o chamado Lemon Test. De acordo com o Lemon Test[9],
que se desenvolve em três etapas, não se vetam em termos absolutos
alguns vínculos do Estado com a Religião. De acordo com os critérios
propostos, um ato do Estado não será inconstitucional pelo simples fato
de prestar algum auxílio a uma religião. “A inconstitucionalidade só se
verificará, em princípio, 1) se o ato não tiver um propósito secular, 2)
se o seu efeito primário for a promoção ou a inibição da religião, ou
3) se provocar um envolvimento excessivo entre os poderes públicos e a
religião. Trata-se aqui de conceitos sensores (sensitizing concepts), relativamente indeterminados, cuja interpretação é deliberadamente deixada aos órgãos jurisdicionais (Bradley), gozando estes de uma certa margem de flexibilidade”[10].
Com o caso
Lynch vs. Donnelly, se reafirmou, na Suprema Corte, a jurisprudência no
sentido de não considerar vedadas as manifestações do Estado que não
busquem simplesmente ostentar algum apoio a determinada religião.
Segundo a Justice Sandra Day O'Connor, no voto que concorreu
para maioria, o Estado ofende a cláusula da neutralidade religiosa de
duas maneiras. A primeira é quando revela um “entrelaçamento excessivo
com as instituições religiosas”. A segunda infração, mais direta, é o
apoio e endosso do governo, ou desaprovação de uma religião. O endosso
enviaria uma mensagem para os não-adeptos da religião que estariam
excluídos dos benefícios do Estado, ao mesmo tempo que enviaria aos
adeptos a mensagem de inclusão aos benefícios do Estado, precisamente,
por pertencer a uma dada religião[11].
Esse teste foi designado como teste de apoio, aprovação ou de endosso ("Endorsement Test”).
Em conclusão que muito poderia ajudar as cortes brasileiras nos conflitos que agora lhe são apresentados, anotou a Justice Sandra
Day O'Connor, um ato governamental deve ser considerado
inconstitucional quando tem o objetivo de apoiar ou desaprovar uma
religião ou crença religiosa, de tal forma que segundo os seus termos
aqueles que concordam com a referida crença são favorecidos (insiders) e os que discordam dela são desfavorecidos (outsiders).
No lado contrário, seria a "reprovação" de uma crença religiosa por ato
estatal, de tal maneira que aqueles que são adeptos dessa crença são
informados de que eles serão estranhos desfavorecidos, enquanto aqueles
que não concordam com essa crença são informados de que eles são
favorecidos[12].
[1] Russell Blackford.Freedom of Religion and Secular State. Versão Kindle, location 196-204.
[2] Russell Blackford.Freedom of Religion and Secular State. Versão Kindle, location 196-204
[3] O
caso obviamente levantou críticas na Alemanha. Segundo Der Spiegel, na
mesma edição, comentaristas da imprensa têm apontado que o Corão só
proíbe o consumo de álcool, e não o simples tocar em garrafas. Um
editorial de primeira página, o jornal Frankfurter Allgemeine Zeitung,
um dos principais jornais da Alemanha, de perfil conservador, criticou o
fato de que o homem só tenha, aparentemente, descoberto suas
inclinações religiosas em 2008, já que ele já havia trabalhado há muito
na seção do supermercado de bebidas alcoólicas sem reclamar.
[4] http://www.spiegel.de/international/germany/controversial-court-ruling-muslim-shelf-stockers-can-refuse-to-handle-alcohol-a-747697.html (acessado em 19.11.2012).
[5] http://www.catedral-anglicana.org.br/?page_id=195 (acesso em 19.11.2012).
[6] Jónatas Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, 1996, p. 311.
[7] Jónatas Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, 1996, p. 311/2.
[8] Jónatas Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, 1996, p. 314/5.
[9] Lemon v. Kurtzman, 403 U.S. 602 (1971).
[10] Jónatas Machado. Liberdade Religiosa numa Comunidade Constitucional Inclusiva: dos direitos da verdade aos direitos dos cidadãos. Universidade de Coimbra – Coimbra Editora, 1996, p. 314/5.
[11] Lynch v. Donnelly 465 U.S. 668 (1984)
[12] Lynch v. Donnelly 465 U.S. 668 (1984)
Néviton Guedes é desembargador federal do TRF da 1ª Região e doutor em Direito pela Universidade de Coimbra
Fonte:
Conjur.
http://chrystianoangel.blogspot.com.br/