O VALOR DA VIDA - UMA ENTREVISTA RARA DE FREUD
Concedida ao jornalista G.S.Viereck
Tradução de Paulo Cesar Souza
Uma outra tradução, em português,
desta entrevista foi publicada no livro, organizado por Fabio Altman, "A
Arte da Entrevista", Ed. Scritta, SP, 1995 e Boi Tempo Editorial, SP,
2004. Altman informa que a entrevista original consta do livro de G.S.Viereck,
"Glimpses of the Great" (1930), editado simultaneamente em Nova York,
Londres e Berlim.
S. Freud: Setenta anos
ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade.
(Quem fala é o professor Sigmund
Freud, o grande explorador da alma. O cenário da nossa conversa foi uma casa de
verão no Semmering, uma montanha nos Alpes austríacos. Eu havia visto o pai da
psicanálise pela última vez em sua casa modesta na capital austríaca. Os poucos
anos entre minha última visita e a atual multiplicaram as rugas na sua fronte.
Intensificaram a sua palidez de sábio. Sua face estava tensa, como se sentisse
dor. Sua mente estava alerta, seu espírito firme, sua cortesia impecável como
sempre, mas um ligeiro impedimento da fala me perturbou. Parece que um tumor
maligno no maxilar superior necessitou ser operado. Desde então Freud usa uma
prótese, para ele uma causa de constante irritação).
S. Freud: Detesto o meu maxilar
mecânico, porque a luta com o aparelho me consome tanta energia preciosa. Mas
prefiro ele a maxilar nenhum. Ainda prefiro a existência à extinção. Talvez os
deuses sejam gentis conosco, tornando a vida mais desagradável à medida que
envelhecemos. Por fim, a morte nos parece menos intolerável do que os fardos
que carregamos. (Freud se recusa a admitir que o
destino lhe reserva algo especial.) Por que ( disse calmamente)
deveria eu esperar um tratamento especial? A velhice, com suas agruras, chega
para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, mais de setenta
anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha
mulher, meus filhos, o pôr-do-sol. Observei as plantas crescerem na primavera.
De vez em quando tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra encontrei um ser
humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer?
George Sylvester Viereck: O
senhor teve a fama. Sua obra influi na literatura de cada país. O homem olha a
vida e a si mesmo com outros olhos, por causa do senhor. E recentemente, no seu
septuagésimo aniversário, o mundo se uniu para homenageá-lo - com exceção da
sua própria Universidade.
S. Freud: Se a Universidade de
Viena me demonstrasse reconhecimento, eu ficaria embaraçado. Não há razão em
aceitar a mim e a minha obra porque tenho setenta anos. Eu não atribuo
importância insensata aos decimais. A fama chega apenas quando morremos e,
francamente, o que vem depois não me interessa. Não aspiro à glória póstuma.
Minha modéstia não é virtude.
George Sylvester Viereck: Não
significa nada o fato de que o seu nome vai viver?
S. Freud: Absolutamente nada,
mesmo que ele viva, o que não é certo. Estou bem mais preocupado com o destino
de meus filhos. Espero que suas vidas não venham a ser difíceis. Não posso
ajudá-los muito. A guerra praticamente liqüidou com minhas posses, o que havia
poupado durante a vida. Mas posso me dar por satisfeito. O trabalho é minha
fortuna. (Estávamos subindo e descendo uma
pequena trilha no jardim da casa. Freud acariciou ternamente um arbusto que
florescia.)
S. Freud: Estou muito mais
interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver
morto.
George Sylvester Viereck: Então o
senhor é, afinal, um profundo pessimista?
S. Freud: Não, não sou. Não
permito que nenhuma reflexão filosófica estrague a minha fruição das coisas
simples da vida.
George Sylvester Viereck: O
senhor acredita na persistência da personalidade após a morte, de alguma forma
que seja?
S. Freud: Não penso nisso. Tudo o
que vive perece. Por que deveria o homem constituir uma exceção?
George Sylvester Viereck:
Gostaria de retornar em alguma forma, de ser resgatado do pó? O senhor não tem,
em outras palavras, desejo de imortalidade?
S. Freud: Sinceramente não. Se a
gente reconhece os motivos egoístas por trás da conduta humana, não tem o
mínimo desejo de voltar à vida; movendo-se num círculo, seria ainda a mesma.
Além disso, mesmo se o eterno retorno das coisas, para usar a expressão de
Nietzsche, nos dotasse novamente do nosso invólucro carnal, para que serviria,
sem memória? Não haveria elo entre passado e futuro. Pelo que me toca, estou
perfeitamente satisfeito em saber que o eterno aborrecimento de viver
finalmente passará. Nossa vida é necessariamente uma série de compromissos, uma
luta interminável entre o ego e seu ambiente. O desejo de prolongar a vida
excessivamente me parece absurdo.
George Sylvester Viereck: Bernard
Shaw sustenta que vivemos muito pouco. Ele acha que o homem pode prolongar a
vida se assim desejar, levando sua vontade a atuar sobre as forças da evolução.
Ele crê que a humanidade pode reaver a longevidade dos patriarcas.
S. Freud: É possível que a morte
em si não seja uma necessidade biológica. Talvez morramos porque desejamos
morrer. Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo
tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da
própria destruição. Do mesmo modo como um pequeno elástico esticado tende a
assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou
inconscientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da
existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a
lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo.
Isto é o que diz o meu livro: Além do Princípio do Prazer. No começo, a
psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a
Morte é igualmente importante. Biologicamente, todo ser vivo, não importa quão
intensamente a vida queime dentro dele, anseia pelo Nirvana, pela cessação da
"febre chamada viver", anseia pelo seio de Abraão. O desejo pode ser
encoberto por digressões. Não obstante, o objetivo derradeiro da vida é a sua
própria extinção.
George Sylvester Vierneck: Isto é
a filosofia da auto-destruição. Ela justifica o auto-extermínio. Levaria
logicamente ao suicídio universal imaginado por Eduard von Hartamann.
S. Freud: A humanidade não
escolhe o suicídio porque a lei do seu ser desaprova a via direta para o seu
fim. A vida tem que completar o seu ciclo de existência. Em todo ser normal, a
pulsão de vida é forte o bastante para contrabalançar a pulsão de morte, embora
no final resulte mais forte. Podemos entreter a fantasia de que a Morte nos vem
por nossa própria vontade. Seria mais possível que pudéssemos vencer a Morte,
não fosse por seu aliado dentro de nós. Neste sentido (acrescentou Freud com um
sorriso) pode ser justificado dizer que toda a morte é suicídio disfarçado.
(Estava ficando frio no jardim.
Prosseguimos a conversa no gabinete. Vi uma pilha de manuscritos sobre a mesa,
com a caligrafia clara de Freud).
George Sylvester Viereck: Em que
o senhor está trabalhando?
S. Freud: Estou escrevendo uma
defesa da análise leiga, da psicanálise praticada por leigos. Os doutores
querem tornar a análise ilegal para os não médicos. A História, essa velha
plagiadora, repete-se após cada descoberta. Os doutores combatem cada nova
verdade no começo. Depois procuram monopolizá-la.
George Sylvester Viereck: O
senhor teve muito apoio dos leigos?
S. Freud: Alguns dos meus
melhores discípulos são leigos.
George Sylvester Viereck: O
senhor está praticando muito psicanálise?
S. Freud: Certamente. Neste
momento estou trabalhando num caso muito difícil, tentando desatar os conflitos
psíquicos de um interessante novo paciente. Minha filha também é psicanalista,
como você vê...
(Nesse ponto apareceu Miss Anna
Freud, acompanhada por seu paciente, um garoto de onze anos, de feições
inconfundivelmente anglo-saxônicas).
George Sylvester Viereck: O
senhor já analisou a si mesmo?
S. Freud: Certamente. O
psicanalista deve constantemente analisar a si mesmo. Analisando a nós mesmos,
ficamos mais capacitados a analisar os outros. O psicanalista é como o bode
expiatório dos hebreus. Os outros descarregam seus pecados sobre ele. Ele deve
praticar sua arte à perfeição para desvencilhar-se do fardo jogado sobre ele.
George Sylvester Viereck: Minha
impressão é de que a psicanálise desperta em todos que a praticam o espírito da
caridade cristã. Nada existe na vida humana que a psicanálise não possa nos
fazer compreender. "Tout comprendre c'est tout pardonner".
S. Freud: Pelo contrário
(bravejou Freud - suas feições assumindo a severidade de um profeta hebreu),
compreender tudo não é perdoar tudo. A análise nos ensina não apenas o que
podemos suportar, mas também o que podemos evitar. Ela nos diz o que deve ser
eliminado. A tolerância com o mal não é de maneira alguma um corolário do
conhecimento.
(Compreendi subitamente porque Freud havia litigado com os seguidores que o haviam abandonado, porque ele não perdoa a sua dissensão do caminho reto da ortodoxia psicanalítica. Seu senso do que é direito é herança dos seus ancestrais. Uma herança de que ele se orgulha como se orgulha de sua raça)...Minha língua é o alemão. Minha cultura, minha realização é alemã. Eu me considero um intelectual alemão, até perceber o crescimento do preconceito anti-semita na Alemanha e na Áustria. Desde então prefiro me considerar judeu.
(Fiquei algo desapontado com esta
observação. Parecia-me que o espírito de Freud deveria habitar nas alturas,
além de qualquer preconceito de raças, que ele deveria ser imune a qualquer
rancor pessoal. No entanto, precisamente a sua indignação, a sua honesta ira,
tornava-o mais atraente como ser humano. Aquiles seria intolerável, não fosse
por seu calcanhar!)
George Sylvester Viereck: Fico
contente, Herr Professor, de que também o senhor tenha seus complexos, de que
também o senhor demonstre que é um mortal!
S. Freud: Nossos complexos são a
fonte de nossa fraqueza; mas, com freqüência, são também a fonte de nossa
força.
George Sylvester Viereck:
Imagino, observei, quais seriam os meus complexos!
S. Freud: Uma análise séria dura
ao menos um ano. Pode durar mesmo dois ou três anos. Você está dedicando muitos
anos de sua vida à "caça aos leões". Você procurou sempre as pessoas
de destaque para a sua geração: Roosevelt, o Imperador, Hindenburg, Briand,
Foch, Joffre, Georg Bernard Shaw...
George Sylvester Viereck: É parte
do meu trabalho.
S. Freud: Mas é também sua
preferência. O grande homem é um símbolo. A sua busca é a busca do seu coração.
Você está procurando o grande homem para tomar o lugar do seu pai. É parte do
seu "complexo do pai".
(Neguei veementemente a afirmação
de Freud. No entanto, refletindo sobre isso, parece-me que pode haver uma
verdade, ainda não suspeitada por mim, em sua sugestão casual. Pode ser o mesmo
impulso que me levou a ele). Gostaria, observei após um momento, de poder ficar
aqui o bastante para vislumbrar o meu coração através do seus olhos. Talvez,
como a Medusa, eu morresse de pavor ao ver minha própria imagem! Entretanto,
receio ser muito informado sobre a psicanálise. Eu freqüentemente anteciparia,
ou tentaria antecipar suas intenções.
S. Freud: A inteligência num
paciente não é um empecilho. Pelo contrário, às vezes facilita o trabalho.
(Neste ponto o mestre da
psicanálise diverge de muitos dos seus seguidores, que não gostam de excessiva
segurança do paciente sob o seu escrutínio).
George Sylvester Viereck: Às
vezes imagino se não seríamos mais felizes se soubéssemos menos dos processos
que dão forma a nossos pensamentos e emoções. A psicanálise rouba a vida do seu
último encanto, ao relacionar cada sentimento ao seu original grupo de
complexos. Não nos tornamos mais alegres descobrindo que nós todos abrigamos o
criminoso e o animal.
S. Freud: Que objeção pode haver
contra os animais? Eu prefiro a companhia dos animais à companhia humana.
George Sylvester Viereck: Por
quê?
S. Freud: Porque são tão mais
simples. Não sofrem de uma personalidade dividida, da desintegração do ego, que
resulta da tentativa do homem de adaptar-se a padrões de civilização demasiado
elevados para o seu mecanismo intelectual e psíquico. O selvagem, como o
animal, é cruel, mas não tem a maldade do homem civilizado. A maldade é a
vingança do homem contra a sociedade, pelas restrições que ela impõe. As mais
desagradáveis características do homem são geradas por esse ajustamento
precário a uma civilização complicada. É o resultado do conflito entre nossos
instintos e nossa cultura. Muito mais agradáveis são as emoções simples e
diretas de um cão, ao balançar a cauda, ou ao latir expressando seu desprazer.
As emoções do cão (acrescentou Freud pensativamente) lembram-nos os heróis da
Antigüidade. Talvez seja essa a razão por que inconscientemente damos aos
nossos cães nomes de heróis antigos como Aquiles e Heitor.
George Sylvester Viereck: Meu
cachorro é um doberman Pinscher chamado Ajax.
S. Freud: (sorrindo) Fico
contente de que não possa ler. Ele certamente seria um membro menos querido da
casa, se pudesse latir sua opinião sobre os traumas psíquicos e o complexo de
Édipo!
George Sylvester Viereck: Mesmo o
senhor, Professor, sonha a existência complexa demais. No entanto, parece-me
que o senhor seja em parte responsável pelas complexidades da civilização
moderna. Antes que o senhor inventasse a psicanálise, não sabíamos que nossa
personalidade é dominada por uma hoste beligerante de complexos muito questionáveis.
A psicanálise torna a vida um quebra-cabeças complicado.
S. Freud: De maneira alguma. A
psicanálise torna a vida mais simples. Adquirimos uma nova síntese depois da
análise. A psicanálise reordena um emaranhado de impulsos dispersos, procura
enrolá-los em torno do seu carretel. Ou, modificando a metáfora, ela fornece o
fio que conduz a pessoa fora do labirinto do seu inconsciente.
George Sylvester Viereck: Ao
menos na superfície, porém, a vida humana nunca foi mais complexa. E a cada dia
alguma nova idéia proposta pelo senhor ou por seus discípulos torna o problema
da condução humana mais intrigante e mais contraditório.
S. Freud: A psicanálise, pelo
menos, jamais fecha a porta a uma nova verdade.
George Sylvester Viereck: Alguns
dos seus discípulos, mais ortodoxos do que o senhor, apegam-se a cada
pronunciamento que sai da sua boca.
S. Freud: A vida muda. A
psicanálise também muda. Estamos apenas no começo de uma nova ciência.
George Sylvester Viereck: A
estrutura científica que o senhor ergueu me parece ser muito elaborada. Seus
fundamentos - a teoria do "deslocamento", da "sexualidade
infantil", do "simbolismo dos sonhos", etc. - parecem
permanentes.
S. Freud: Eu repito, porém, que
nós estamos apenas no início. Eu sou apenas um iniciador. Consegui desencavar
monumentos soterrados nos substratos da mente. Mas ali onde eu descobri alguns
templos, outros poderão descobrir continentes.
George Sylvester Viereck: O
senhor ainda coloca a ênfase sobretudo no sexo?
S. Freud: Respondo com as
palavras do seu próprio poeta, Walt Whitman: "Mas tudo faltaria, se
faltasse o sexo" ("Yet all were lacking, if sex were lacking").
Entretanto, já lhe expliquei que agora coloco ênfase quase igual naquilo que
está "além" do prazer - a morte, a negociação da vida. Este desejo
explica por que alguns homens amam a dor - como um passo para o aniquilamento!
Explica por que os poetas agradecem a
Whatever gods there be,
That no life lives forever
And even the weariest river
Winds somewhere safe to sea.
("Quaisquer deuses que existam/
Que vida nenhuma viva para sempre/ Que os mortos jamais se levantem / E também
o rio mais cansado/ Deságüe tranqüilo no mar".)
George Sylvester Viereck: Shaw,
como o senhor, não deseja viver para sempre, mas à diferença do senhor, ele
considera o sexo desinteressante.
S. Freud: (sorrindo) Shaw não
compreende o sexo. Ele não tem a mais remota concepção do amor. Não há um
verdadeiro caso amoroso em nenhuma de suas peças. Ele faz brincadeira do amor
de Júlio César - talvez a maior paixão da História. Deliberadamente, talvez
maliciosamente, ele despe Cleópatra de toda grandeza, reduzindo-a uma
insignificante garota. A razão para a estranha atitude de Shaw diante do amor,
para a sua negação do móvel de todas as coisas humanas, que tira de suas peças
o apelo universal, apesar do seu enorme alcance intelectual, é inerente à sua
psicologia. Em um de seus prefácios, ele mesmo enfatiza o traço ascético do seu
temperamento. Eu posso ter errado em muitas coisas, mas estou certo de que não
errei ao enfatizar a importância do instinto sexual. Por ser tão forte, ele se
choca sempre com as convenções e salvaguardas da civilização. A humanidade, em
uma espécie de auto-defesa, procura negar sua importância. Se você arranhar um
russo, diz o provérbio, aparece o tártaro sob a pele. Analise qualquer emoção
humana, não importa quão distante esteja da esfera da sexualidade, e você
certamente encontrará esse impulso primordial, ao qual a própria vida deve a
perpetuação.
George Sylvester Viereck: O
senhor, sem dúvida, foi bem sucedido em transmitir esse ponto de vista aos
escritores modernos. A psicanálise deu novas intensidades à literatura.
S. Freud: Também recebeu muito da
literatura e da filosofia. Nietzsche foi um dos primeiros psicanalistas. É
surpreendente até que ponto a sua intuição prenuncia as novas descobertas.
Ninguém se apercebeu mais profundamente dos motivos duais da conduta humana, e
da insistência do princípio do prazer em predominar indefinidamente. O
Zaratustra diz: "A dor grita: Vai! Mas o prazer quer eternidade Pura,
profundamente eternidade". A psicanálise pode ser menos amplamente
discutida na Áustria e na Alemanha do que nos Estados Unidos, a sua influência
na literatura é imensa, porém. Thomas Mann e Hugo von Hofmannsthak muito devem
a nós. Schnitzler percorre uma via que é, em larga medida, paralela ao meu
próprio desenvolvimento. Ele expressa poeticamente o que eu tento comunicar
cientificamente. Mas o Dr. Schnitzler não é apenas um poeta, é também um
cientista.
George Sylvester Viereck: O
senhor não é apenas um cientista, mas também um poeta. A literatura americana
está impregnada da psicanálise. Hupert Hughes Harvrey O'Higgins e outros
fazem-se de seus intérpretes. É quase impossível abrir um novo romance sem
encontrar referência à psicanálise. Entre os dramaturgos, Eugene O'Neill e
Sydney Howard têm profunda dívida para com o senhor. A "The Silver
Cord", por exemplo, é simplesmente uma dramatização do complexo de Édipo.
S. Freud: Eu sei e aprecio o
cumprimento que há nessa constatação. Mas tenho receio da minha popularidade
nos Estados Unidos. O interesse americano pela psicanálise não se aprofunda. A
popularização leva à aceitação superficial sem estudo sério. As pessoas apenas
repetem as frases que aprendem no teatro ou na imprensa. Pensam compreender
algo da psicanálise porque brincam com seu jargão! Eu prefiro a ocupação
intensa com a psicanálise, tal como ocorre nos centros europeus. A América foi
o primeiro país a reconhecer-me oficialmente. A Clark University concedeu-me um
diploma honorário quando eu ainda era ignorado na Europa. Entretanto, a América
fez poucas contribuições originais à psicanálise. Os americanos são julgadores
inteligentes, raramente pensadores criativos. Os médicos nos Estados Unidos, e
ocasionalmente também na Europa, procuram monopolizar para si a psicanálise.
Mas seria um perigo para a psicanálise deixá-la exclusivamente nas mãos dos
médicos, pois uma formação estritamente médica é, com freqüência, um empecilho
para o psicanalista. É sempre um empecilho, quando certas concepções
científicas tradicionais ficam arraigadas no cérebro estudioso.
(Freud tem que dizer a verdade a
qualquer preço! Ele não pode obrigar a si mesmo a agradar a América, onde está
a maioria de seus admiradores. Apesar da sua intransigente integridade, Freud é
a urbanidade em pessoa. Ele ouve pacientemente cada intervenção, não procurando
jamais intimidar o entrevistador. Raro é o visitante que deixa sua presença sem
algum presente, algum sinal de hospitalidade! Havia escurecido. Era tempo de eu
tomar o trem de volta à cidade que uma vez abrigara o esplendor imperial dos
Habsburgos. Acompanhado da esposa e da filha, Freud desceu os degraus que
levavam do seu refúgio na montanha à rua, para me ver partir. Ele me pareceu
cansado e triste, ao dar o seu adeus).
S. Freud: Não me faça parecer um
pessimista (disse ele após o aperto de mão). Eu não tenho desprezo pelo mundo.
Expressar desdém pelo mundo é apenas outra forma de cortejá-lo, de ganhar
audiência e aplauso. Não, eu não sou um pessimista, não, enquanto tiver meus
filhos, minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz - ao menos não mais
infeliz que os outros.
(O apito de meu trem soou na
noite. O automóvel me conduzia rapidamente para a estação. Aos poucos o vulto
ligeiramente curvado e a cabeça grisalha de Sigmund Freud desapareceram na
distância).