sexta-feira, 9 de maio de 2014
O fantástico mundo de David Foster Wallace
David
Foster Wallace (21 de fevereiro de 1962 – 12 de setembro de 2008) foi um
novelista e ensaísta norte-americano. Um dos nomes mais ecoados e importantes
da ficção recente; experimental, misturava estilos eruditos, terminologia
filosófica, vocabulário sofisticado e notas de rodapé em cascata. Seus livros
assustam pela extensão da linguagem, densidade e pela complexidade, mas também
são capazes de estabelecer uma ligação íntima com o leitor. Nasceu em Nova
York, é autor de romances como Infinite Jest (1996), volumes de contos e duas
antologias de ensaios, entre outros livros.
Sofrendo de depressão atípica, cometeu
suicídio em 2008. Se enforcou no pátio de sua casa, em Claremont, na
Califórnia. Na garagem, onde costumava escrever, deixou uma carta de duas
páginas à mulher, ao lado de manuscritos inacabados de seu último romance.
Tinha 46 anos.
"As pessoas deprimidas são
as mais engraçadas", comentou o escritor Jonathan Franzen na Flip (Festa
Literária de Paraty). Referia-se a Wallace, de quem foi amigo e rival
literário. "Uma das pessoas mais engraçadas que já conheci acabou se
matando."
A primeira vez em que tive contato com o universo do David Foster Wallace foi através de um micro texto, algo meio parecido com esses virais de “autoajuda” que tanto circulam na Internet. No entanto, bastou passar pelas primeiras linhas que a impressão foi desfeita. Deixo aqui uma boa tradução do discurso proferido pelo autor em 2005, em uma cerimônia de graduação no Kenyon College.
A primeira vez em que tive contato com o universo do David Foster Wallace foi através de um micro texto, algo meio parecido com esses virais de “autoajuda” que tanto circulam na Internet. No entanto, bastou passar pelas primeiras linhas que a impressão foi desfeita. Deixo aqui uma boa tradução do discurso proferido pelo autor em 2005, em uma cerimônia de graduação no Kenyon College.
***
Por David Foster Wallace
Dois peixinhos estão nadando
juntos e cruzam com um peixe mais velho, nadando em sentido contrário. Ele os
cumprimenta e diz:
- Bom dia, meninos. Como está a
água?
Os dois peixinhos nadam mais um
pouco, até que um deles olha para o outro e pergunta:
- Água? Que diabo é isso?
Não se preocupem, não pretendo me
apresentar a vocês como o peixe mais velho e sábio que explica o que é água ao
peixe mais novo. Não sou um peixe velho e sábio. O ponto central da história
dos peixes é que a realidade mais óbvia, ubíqua e vital costuma ser a mais
difícil de ser reconhecida. Enunciada dessa -forma, a frase soa como uma
platitude – mas é fato que, nas trincheiras do dia-a-dia da existência adulta,
lugares comuns banais podem adquirir uma importância de vida ou morte.
Boa parte das certezas que
carrego comigo acabam se revelando totalmente equivocadas e ilusórias. Vou dar
como exemplo uma de minhas convicções automáticas: tudo à minha volta respalda
a crença profunda de que eu sou o centro absoluto do universo, de que sou a
pessoa mais real, mais vital e essencial a viver hoje. Raramente mencionamos
esse egocentrismo natural e básico, pois parece socialmente repulsivo, mas no
fundo ele é familiar a todos nós. Ele faz parte de nossa configuração padrão,
vem impresso em nossos circuitos ao nascermos.
Querem ver? Todas as experiências
pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês
mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês,
ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os
pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem
captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não
pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão,
desprendimento ou outras "virtudes". Essa não é uma questão de
virtude - trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão
original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse
egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo
pelas lentes do meu ser.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma ideia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Num ambiente de excelência acadêmica, cabe a pergunta: quanto do esforço em adequar a nossa configuração padrão exige de sabedoria ou de intelecto? A pergunta é capciosa. O risco maior de uma formação acadêmica - pelo menos no meu caso - é que ela reforça a tendência a intelectualizar demais as questões, a se perder em argumentos abstratos, em vez de simplesmente prestar atenção ao que está ocorrendo bem na minha frente.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o surrado clichê de "ensinar os alunos como pensar" é, na verdade, uma simplificação de uma ideia bem mais profunda e séria. "Aprender a pensar" significa aprender como exercer algum controle sobre como e o que cada um pensa. Significa ter plena consciência do que escolher como alvo de atenção e pensamento. Se vocês não conseguirem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão totalmente à deriva.
Lembrem o velho clichê: "A
mente é um excelente servo, mas um senhorio terrível." Como tantos
clichês, também esse soa inconvincente e sem graça. Mas ele expressa uma grande
e terrível verdade. Não é coincidência que adultos que se suicidam com armas de
fogo quase sempre o façam com um tiro na cabeça. Só que, no fundo, a maioria
desses suicidas já estava morta muito antes de apertar o gatilho. Acredito que
a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens e
patacoadas que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como
percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar
morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão - a de sermos
singularmente, completamente, imperialmente sós.
Isso também parece outra
hipérbole, mais uma abstração oca. Sejamos concretos então. O fato cru é que
vocês, graduandos, ainda não têm a mais vaga ideia do significado real do que
seja viver um dia após o outro. Existem grandes nacos da vida adulta sobre os quais
ninguém fala em discursos de formatura. Um desses nacos envolve tédio, rotina e
frustração mesquinha.
Vou dar um exemplo prosaico
imaginando um dia qualquer do futuro. Você acordou de manhã, foi para seu
prestigiado emprego, suou a camisa por nove ou dez horas e, ao final do dia,
está cansado, estressado, e tudo que deseja é chegar em casa, comer um bom
prato de comida, talvez relaxar por umas horas, e depois ir para cama, porque
terá de acordar cedo e fazer tudo de novo. Mas aí lembra que não tem comida na
geladeira. Você não teve tempo de fazer compras naquela semana, e agora precisa
entrar no carro e ir ao supermercado. Nesse final de dia, o trânsito está uma
lástima.
Quando você finalmente chega lá,
o supermercado está lotado, horrivelmente iluminado com lâmpadas fluorescentes
e impregnado de uma música ambiente de matar. É o último lugar do mundo onde
você gostaria de estar, mas não dá para entrar e sair rapidinho: é preciso
percorrer todos aqueles corredores superiluminados para encontrar o que procura,
e manobrar seu carrinho de compras de rodinhas emperradas entre todas aquelas
outras pessoas cansadas e apressadas com seus próprios carrinhos de compras. E,
claro, há também aqueles idosos que não saem da frente, e as pessoas
desnorteadas, e os adolescentes hiperativos que bloqueiam o corredor, e você
tem que ranger os dentes, tentar ser educado, e pedir licença para que o deixem
passar. Por fim, com todos os suprimentos no carrinho, percebe que, como não há
caixas suficientes funcionando, a fila é imensa, o que é absurdo e irritante,
mas você não pode descarregar toda a fúria na pobre da caixa que está à beira
de um ataque de nervos.
De qualquer modo, você acaba
chegando à caixa, paga por sua comida e espera até que o cheque ou o cartão
seja autenticado pela máquina, e depois ouve um "boa noite, volte
sempre" numa voz que tem o som absoluto da morte. Na volta para casa, o
trânsito está lento, pesado etc. e tal.
É num momento corriqueiro e
desprezível como esse que emerge a questão fundamental da escolha. O
engarrafamento, os corredores lotados e as longas filas no supermercado me dão
tempo de pensar. Se eu não tomar uma decisão consciente sobre como pensar a
situação, ficarei irritado cada vez que for comprar comida, porque minha
configuração padrão me leva a pensar que situações assim dizem respeito a mim,
a minha fome, minha fadiga, meu desejo de chegar logo em casa. Parecerá sempre
que as outras pessoas não passam de estorvos. E quem são elas, aliás? Quão
repulsiva é a maioria, quão bovinas, e inexpressivas e desumanas parecem ser as
da fila da caixa, quão enervantes e rudes as que falam alto nos celulares.
Também posso passar o tempo no
congestionamento zangado e indignado com todas essas vans, e utilitários e
caminhões enormes e estúpidos, bloqueando as pistas, queimando seus imensos
tanques de gasolina, egoístas e perdulários. Posso me aborrecer com os adesivos
patrióticos ou religiosos, que sempre parecem estar nos automóveis mais
potentes, dirigidos pelos motoristas mais feios, desatenciosos e agressivos,
que costumam falar no celular enquanto fecham os outros, só para avançar uns 20
metros idiotas no engarrafamento. Ou posso me deter sobre como os filhos dos
nossos filhos nos desprezarão por desperdiçarmos todo o combustível do futuro,
e provavelmente estragarmos o clima, e quão mal-acostumados e estúpidos e
repugnantes todos nós somos, e como tudo isso é simplesmente pavoroso etc. e
tal.
Se opto conscientemente por
seguir essa linha de pensamento, ótimo, muitos de nós somos assim - só que pensar
dessa maneira tende a ser tão automático que sequer precisa ser uma opção. Ela
deriva da minha configuração padrão.
Mas existem outras formas de
pensar. Posso, por exemplo, me forçar a aceitar a possibilidade de que os
outros na fila do supermercado estão tão entediados e frustrados quanto eu, e,
no cômputo geral, algumas dessas pessoas provavelmente têm vidas bem mais
difíceis, tediosas ou dolorosas do que eu.
Fazer isso é difícil, requer
força de vontade e empenho mental. Se vocês forem como eu, alguns dias não
conseguirão fazê-lo, ou simplesmente não estarão a fim. Mas, na maioria dos
dias, se estiverem atentos o bastante para escolher, poderão preferir olhar
melhor para essa mulher gorducha, inexpressiva e estressada que acabou de
berrar com a filhinha na fila da caixa. Talvez ela não seja habitualmente
assim. Talvez ela tenha passado as três últimas noites em claro, segurando a
mão do marido que está morrendo. Ou talvez essa mulher seja a funcionária mal
remunerada do Departamento de Trânsito que, ontem mesmo, por meio de um pequeno
gesto de bondade burocrática, ajudou algum conhecido seu a resolver um problema
insolúvel de documentação.
Claro que nada disso é provável,
mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se
estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês,
assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e
irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras
opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação "inferno do
consumidor" não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma
força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente
místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam
decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Na trincheira do dia-a-dia, não
há lugar para o ateísmo. Não existe algo como "não venerar". Todo
mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para
escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar - seja Jesus
Cristo, Alá ou Jeová, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos - é que
todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e
extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o
suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser
sexy, sempre se sentirá feio - e quando o tempo e a idade começarem a se
manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.
No fundo, sabemos de tudo isso,
que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao
venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais
poder sobre os outros para afastar o medo. Venerando o intelecto, sendo visto
como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser
desmascarado. E assim por diante.
O insidioso dessas formas de
veneração não está em serem pecaminosas - e sim em serem inconscientes. São o
tipo de veneração em direção à qual você vai se acomodando quase que por
gravidade, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer
ver, ao que valorizar, sem ter plena consciência de que está fazendo uma
escolha.
O mundo jamais o desencorajará de
operar na configuração padrão, porque o mundo dos homens, do dinheiro e do
poder segue sua marcha alimentado pelo medo, pelo desprezo e pela veneração que
cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de
modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade
de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossas
caveiras, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem
méritos. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais
preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e
exibicionismo. A liberdade verdadeira envolve atenção, consciência, disciplina,
esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros - no cotidiano,
de forma trivial, talvez medíocre, e certamente pouco excitante. Essa é a
liberdade real. A alternativa é a torturante sensação de ter tido e perdido
alguma coisa infinita.
Pensem de tudo isso o que
quiserem. Mas não descartem o que ouviram como um sermão cheio de certezas.
Nada disso envolve moralidade, religião ou dogma. Nem questões grandiosas sobre
a vida depois da morte. A verdade com V maiúsculo diz respeito à vida antes da
morte. Diz respeito a chegar aos 30 anos, ou talvez aos 50, sem querer dar um
tiro na própria cabeça. Diz respeito à consciência - consciência de que o real
e o essencial estão escondidos na obviedade ao nosso redor - daquilo que
devemos lembrar, repetindo sempre: "Isto é água, isto é água."
É extremamente difícil lembrar
disso, e permanecer consciente e vivo, um dia depois do outro.
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