sexta-feira, 2 de maio de 2014

O Mito Da Caverna: iniciação platônica do saber acerca do ser




A construção platônica da metafísica se articula na república (politeia, 504D-517C), plasticamente travejado pela configuração imagética do sol, da linha segmentada e da caverna. O denominador comum às imagens é a separação do sensível e do inteligível, de que decorrem as oposições do corpo e da alma, da matéria e do espírito, da aparência e da essência, da realidade e da idealidade, e de todos os pares de dualidades que se impuseram à tradição onto-teo-lógica do pensamento ocidental. No sol separa-se a multiplicidade ôntica, onde reina o astro diurno, da unicidade ontológica, onde impera a ideia do Bem; na linha segmentada, o multiverso das coisas, do universo das ideias; e na caverna o que ocorre no interior ensombrado, do que transcorre no exterior iluminado.

Na decisão histórica desta cisão metafisica, o ente sensível e o ser inteligível são separados e sitiados em dois lugares extremos e contrapolares: o real subterrâneo da aparência e o ideal supraceleste da essência. Designa precisamente o lugar da diferenciação de dois mundos abstratos: o primeiro compreende o que é, porém nunca devém, e o segundo abrange o que devém, mas não é. O ingente esforço do esquema conceitual do platonismo para estabelecer a relação entre a idealidade superior e a realidade inferior, estendendo uma ponte entre os dois mundos separados – da eternidade para temporalidade ou, inversamente, da temporalidade para eternidade. Não conseguem senão do pressuposto aporético de dois reinos dilematicamente abstraídos e cindidos: um, o das coisas que não são, e outro, o das ideias que são. O totum sensível do mundo concreto da vida se converte, por tanto, na clausura de uma caverna cujos prisioneiros na gestação insana das sombras. 

A iniciação platônica do saber acerca do ser se realiza na passagem da obscuridade terrestre da aparência para a claridade celeste e supraceleste da essência. No antro assombrado, o ritual iniciático se dramatiza em oito episódios rigorosamente concatenados: 1º) o prisioneiro, impedido de se mover e de volver o olhar para ver e conhecer, é o cavernícola imobilizado nas trevas da ignorância; 2º) o volta-se para objetos iluminados pelo fogo como estágio inicial da percepção; 3º) o devota-se ao ofício de mirar o próprio fogo como exercício propedêutico de se adaptar a vista à contemplação da luz; 4º) a peregrinação ascendente através do caminho escalonado até a claridade doa dia; 5º) o dever cingir-se à captação de sombras como etapa preparatória da capacidade de se perceber a luminosidade diurna; 6º) a percepção das coisas que produzem que produzem sombras e imagens reflexas; 7º) a contemplação do céu noturno, em cujo fulgor menos intenso se prepara a fase terminal da adaptação perceptiva ao reino dos sensíveis; 8º) a visão final do sol em todo o seu esplendor transcendente. Exatamente o que é o bem em si mesmo em relação à inteligência e aos inteligíveis, o sol o é no âmbito visível, com respeito à vista e aos visíveis. 

Conhecer é saber ver, não apenas com os olhos do corpo, que se se limitam à observação do mundo visível, mas, acima de tudo com o olho da alma, que se compraz na admirável visão do universo ideal.   




Por Claudio Castoriadis
fonte: (Filosofia política III; n.1)
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