quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Leon Tolstoi - Depois do baile


"Então os senhores dizem que o homem não é capaz de compreender por si mesmo o que é mau, dizem que todos dependem do ambiente, que todos são vítimas do seu meio. Pois penso que tudo depende do acaso. E falo por experiência própria."

Assim começou Ivan Vassílievich, a quem todos respeitavam, após uma conversa que tivemos em torno da ideia de que, para aprimoramento pessoal, é necessário antes de tudo mudar as condições em que as pessoas vivem. Ninguém disse propriamente que era impossível compreender o que é bom e o o que é mau, mas Ivan Vassílievitch tinha aquela maneira peculiar de responder aos próprios pensamentos, surgidos no correr de uma conversa, e de, sob o efeito de tais pensamentos, contar episódios da sua vida. Muitas vezes esquecia completamente o motivo que o levara a contar, deixava-se arrebatar pelo seu relato, ainda mais por­que contava com muita franqueza e veracidade.

Assim fez também então.

 "Falo por experiência própria. Toda a minha vida se constituiu dessa forma, e não de outro modo, não em decorrência do meio, mas sim de algo bem diferente."

"E de que foi então?", perguntamos.

"Pois então conte."

Ivan Vassílievitch pôs-se a refletir, balançou a cabeça.

"Sim", disse. "Toda a minha vida se transformou em uma noite, ou melhor,
em uma manhã.

"O que aconteceu?"

"Aconteceu que eu estava intensamente apaixonado. Apaixonei-me muitas vezes, mas aquele foi o amor mais forte que senti. Faz tempo; ela já tem uma filha casada. Era a B..., sim, Várienka B..." Ivan Vassílievitch disse o sobrenome da família. "Mesmo aos cinquenta anos, ela era de uma beleza notável. Mas na juventude, aos dezoito anos, era fascinante: alta, esbelta, graciosa e majestosa, majestosa no rigor da palavra. Sempre se portava de modo extraordinariamente ereto, como se não pudesse ser de outra forma, com a cabeça um pouco inclinada para trás, e, com a sua beleza e a sua estatura elevada, apesar da magreza, que chegava a ser ossuda, aquilo lhe dava um certo aspecto imperial, que levaria as pessoas a se afastarem, não fossem o sorriso e a boca sempre carinhosa e alegre, e os olhos encantadores e brilhantes, e todo o seu ser jovem e gentil"

"Como Ivan Vassílievitch retrata bem."

"Sim, mas, por melhor que eu retrate, é impossível retratar de modo que os senhores entendam como ela era. Mas a questão não é essa: o que quero contar se passou nos anos quarenta. Eu era, nessa época, estudante numa universidade de província . Não sei se isso é bom ou ruim, mas na época não havia entre nós, em nossa universidade, nenhum círculo, nenhuma teoria, éramos simplesmente jovens e vivíamos como é próprio da juventude: estudávamos e nos divertíamos.

Eu era um rapaz muito alegre, esperto e ainda por cima rico. Tinha um cavalo fogoso que andava a passo equipado, descia os morros com as senhoritas (ainda não havia chegado a moda dos patins), fazia farras com os camaradas (naquele tempo, não bebíamos senão champanhe; quando não tínhamos dinheiro, não bebíamos nada, nem vodca, como fazemos agora). Os meus principais prazeres eram as festas e os bailes. Eu dançava bem e não era feio."

"Ora, deixe de modéstia", interrompeu-o uma das senhoras que o ouviam. "Afinal conhecemos o seu retrato em daguerreótipo. O senhor não só não era feio, como era um homem belíssimo."


"Belíssimo ou não belíssimo, não vem ao caso. O caso é que, na época desse que foi o mais forte amor da minha vida, estava eu num baile, no último dia do carnaval, na casa do chefe da província, um velhinho bonachão, ricaço, hospitaleiro e camarista da corte. Sua esposa, tão simpática quanto ele, recebia os convidados num vestido de veludo marrom, com uma tiara de brilhantes na cabeça, e com o colo e os ombros descobertos, velhos, fartos, brancos, como um retrato de Ielizavieta Petróvna. O baile estava maravilhoso. O salão estava lindo, tinha um coro, músicos, os famosos conjuntos de servos formados naquele tempo pelos senhores de terra amantes da música, um bufê magnífico e um mar transbordante de champanhe, mas não bebi porque sem a bebida eu já estava embriagado de amor, em compensação dançava até me esgotar, dançava as quadrilhas, as valsas, as polcas, e é claro, o mais possível, sempre com Várienka. Ela usava um vestido branco com um cinto cor-de-rosa e luvas brancas de pelica, que por pouco não chegavam aos cotovelos magros, pontudos, e uns sapatinhos brancos de cetim. Tomaram-me a mazurca: o odioso engenheiro Aníssimov, e eu até hoje não consigo perdoar-lhe por isso, convidou-a para dançar logo que ela chegou, enquanto eu corria para o barbeiro e andava atrás de umas luvas e me atrasava. Assim, não dancei a mazurca com ela, mas sim com uma alemãzinha que antes eu já havia namorado um pouquinho. Mas receio ter sido muito rude com a alemãzinha naquela noite, não conversei, nem olhei para ela, só via o vulto alto, esbelto, de vestido branco e cinto cor-de-rosa, o rosto radiante, ruborizado, as covinhas, e os olhos carinhosos, meigos. Eu não era o único, todos olhavam para ela e ficavam encantados, os homens e também as mulheres, apesar de ela ofuscar todas as outras. Era impossível não se encantar.

"Por força de uma lei, por assim dizer, não dancei com ela a mazurca, mas na realidade dançamos quase todo o tempo. Sem se perturbar, ela atravessava o salão inteiro, direto ao meu encontro, eu dava um salto para a frente sem esperar o convite e ela, com um sorriso, agradecia a minha perspicácia. Quando havia troca de pares e eu era conduzido de volta na sua direção, às vezes ela não adivinhava o meu passo e segurava outra mão que não a minha, encolhia os ombros magros e, em sinal de pesar e de consolo, sorria para mim. Quando fazíamos as figuras da mazurca em tempo de valsa, valsávamos juntos demoradamente e ela, muitas vezes sem fôlego, sorria e me dizia: 'Encore. E valsei e valsei e nem sentia o meu corpo."

"Ora, como não sentia, acho que sentia bastante quando a apertava pela cintura, sentia não só o seu corpo, como também o dela", disse um dos convidados.

De repente Ivan Vassílievitch ficou ruborizado e quase gritou, com irritação:

"Sim, aí está como são os senhores, a juventude de hoje em dia. Os senhores, além do corpo, não enxergam nada. Em nosso tempo, não era assim. Quanto mais intensamente eu estava apaixonado, mais incorpórea ela se tornava para mim. Os senhores hoje olham os pés, os tornozelos e outras coisas, os senhores despem as mulheres pelas quais estão apaixonados, mas para mim, como dizia Alphonse Karr um bom escritor, o objeto do meu amor veste sempre roupas de bronze. Nós não só não despíamos, como nos empenhávamos em cobrir a nudez, como faz um bom filho de Noé. Ora, mas os senhores não vão entender..."

"Não lhe dêem ouvidos. E depois, o que houve?", perguntou um de nós.

"Pois bem. Assim, dancei mais com ela e não vi o tempo passar. Os músicos, já com um certo desespero de cansaço, os senhores sabem como acontece no fim de um baile, repetiam os mesmos temas da mazurca, as mães e os pais já se haviam levantado das mesas de cartas nos salões, aguardavam o jantar, os criados passavam correndo com mais frequência, levando coisas. Ainda não eram três horas. Era preciso aproveitar os últimos minutos. Chamei-a de novo para a mazurca e, pela centésima vez, percorremos o salão.

'"Então, depois do jantar, a quadrilha será minha?', perguntei, enquanto a levava para o seu lugar.

"'Claro, se não me levarem embora', respondeu, sorrindo.

"Não permitirei', disse eu.

"Dê-me o leque', pediu.

''Fico triste em devolvê-lo', respondi, enquanto lhe entregava um leque branco e baratinho.

“Pois tome isto, para que o senhor não fique triste', disse ela, e arrancou uma peninha do leque e me deu.

"Segurei a peninha e só com o olhar pude exprimir todo o meu entusiasmo e gratidão. Eu estava não só alegre e satisfeito, eu estava feliz, abençoado, eu me sentia bem, eu não era mais eu, e sim uma criatura extraterrena que desconhecia o mal e só era capaz de fazer o bem. Escondi a peninha dentro da luva e fiquei parado, sem forças para separar-me dela.

'"Veja, estão convidando o papai para dançar', disse ela, apontando para o vulto alto e esbelto do pai, um coronel com dragonas prateadas que estava na porta, junto à anfitriã e outras senhoras.

'"Várienka, venha cá', ouvimos a voz alta da anfitriã, que usava uma tiara de brilhantes e tinha ombros ielizavietanos.

"Várienka seguiu na direção da porta e eu fui logo atrás."

'"Ma chère, convença seu pai a dar uns passos de dança com você. Vamos, por favor, Piotr Vladislávitch', voltou-se a anfitriã para o coronel.

"O pai de Várienka era um velho muito bonito, esbelto, alto e viçoso. Tinha o rosto muito corado, com um bigode branco de pontas levantadas à la Nicolas I, (3) suíças já brancas que se uniam ao bigode, o cabelo das têmporas penteado para a frente e, nos lábios e nos olhos radiantes, o mesmo sorriso carinhoso e alegre da filha. Tinha um porte magnífico, o peito largo, inflado à maneira militar, ornado de medalhas e sem ostentação, os ombros fortes, as pernas compridas e bem feitas. Era um chefe militar bem ao tipo dos veteranos do tempo de Nicolau.

"Quando nos aproximamos da porta, o coronel se recusava, dizendo que havia desaprendido a dançar, no entanto, sorrindo, baixou a mão no lado esquerdo, desembainhou a espada, entregou-a a um jovem solícito e, após tirar a luva de camurça da mão direita — 'tudo tem de ser feito conforme as regras', disse sorrindo —, tomou a mão da filha e postou-se a um quarto de volta, à espera do compasso.

"No aguardado início do tema da mazurca, ele bateu agilmente um pé no chão, esticou a outra perna e sua figura alta, corpulenta, deslocou-se em redor do salão, num sapateado ora baixo e suave, ora barulhento e tempestuoso. A figura graciosa de Várienka planava à sua volta, de maneira imperceptível, no tempo certo, encurtando ou esticando os passos dos seus pequenos pezinhos brancos de cetim. O salão inteiro seguia todos os movimentos do par. Eu não estava apenas encantado, eu os observava com um enternecimento extasiado. Comoviam-me sobretudo as botas do pai, com presilhas bem justas — boas botas de couro de bezerro, mas não de bico fino, como ditava a moda, e sim antigas, de bico quadrado e sem salto. Pelo visto, tinham sido feitas pelo sapateiro do batalhão. 'Para vestir e apresentar bem a filha querida, ele não compra botas da moda, usa botas feitas em casa', pensei, e aquelas botas de bico quadrado enterneceram-me de um modo especial. Via-se que outrora ele dançara muito bem, mas agora estava pesado e as pernas já não eram bastante flexíveis para todos os passos ligeiros e bonitos que tentava executar. Mesmo assim, deu duas voltas no salão com agilidade. Quando abriu e logo depois fechou as pernas e tombou sobre um joelho, ainda que de modo um pouco pesado, enquanto ela, sorrindo e ajeitando a saia em que o pai havia esbarrado, circundava-o com suavidade, todos aplaudiram bem alto. Após levantar-se com certo esforço, o pai tomou carinhosamente nas mãos a cabeça da filha e, depois de beijar sua testa, trouxe-a para mim, pensando que eu ia dançar com ela. Respondi que não era eu o seu par."

'"Ora, não importa, dance com ela o senhor, agora', disse o coronel, sorrindo de modo afetuoso, e recolocou a espada na bainha.

"Tal como acontece com o conteúdo de uma garrafa que, após escorrer a primeira gota, se derrama em grandes jatos, assim também na minha alma o amor por Várienka liberou toda a capacidade de amar que estava oculta dentro de mim. Naquela hora, eu abraçaria o mundo inteiro com o meu amor. Eu amava também a anfitriã de tiara, com seu busto ielizavetano, e seu marido, e seus convidados, e seus criados, e até o engenheiro Aníssimov, que estava aborrecido comigo. Em relação ao pai dela, com suas botas feitas em casa e seu sorriso carinhoso, tão parecido com o da filha, eu experimentava então uma espécie de sentimento de ternura e enlevo.

'A mazurca terminou, os anfitriões chamaram os convidados para o jantar, mas o coronel B. recusou o convite, dizendo que no dia seguinte precisava acordar cedo, e despediu-se dos anfitriões. Cheguei a temer que ela também fosse embora, porém ficou no baile com a mãe.

"Depois do jantar, dancei com ela a quadrilha prometida e, embora eu parecesse estar infinitamente feliz, minha felicidade crescia mais e mais. Nada falávamos de amor. Eu não perguntava, nem a ela nem mesmo a mim, se ela me amava. Eu a amava e isso era o bastante. Só temia uma coisa: que alguém estragasse a minha felicidade.

"Quando cheguei em casa, tirei a roupa e pensei em dormir, mas vi que era completamente impossível. Tinha na mão a peninha do seu leque e a sua luva inteira, que ela me dera ao ir embora, no momento de subir na carruagem, quando ajudei sua mãe e depois a ela. Eu observava esses objetos e, sem fechar os olhos, via o seu vulto na minha frente, naquele minuto em que, optando entre dois cavalheiros, ela adivinhou o sentido do meu passo e ouvi sua voz meiga, quando dizia: 'Um orgulho, não é?' — e com alegria me deu a mão, ou quando, depois do jantar, tomou um gole de uma taça de champanhe e olhou-me de soslaio com os olhos carinhosos. Porém, mais que tudo, eu a via dançar com o pai, no momento em que se movia suavemente em torno dele e, com orgulho e alegria, por si e por ele também, olhava de relance para os espectadores admirados. E, involuntariamente, uni o pai e a filha num mesmo sentimento terno e comovido.

"Na época, eu morava com o meu falecido irmão. Ele não gostava da vida mundana, em geral, e não ia a bailes; naquela altura meu irmão estava se preparando para o exame de doutoramento e levava uma vida regrada. Estava dormindo. Observei sua cabeça afundada no travesseiro, encoberta até a metade pelo cobertor de flanela, e me veio uma pena afetuosa em relação a ele, tive pena porque meu irmão não conhecia e não compartilhava aquela felicidade que eu experimentava. Nosso servo e criado Petrucha veio ao meu encontro com uma vela e quis ajudar-me a trocar de roupa, mas dispensei-o. O aspecto do seu rosto sono-lento, de cabelos emaranhados, pareceu-me enternecedor e tocante. Tentando não fazer barulho, segui para o meu quarto na ponta dos pés e sentei-me na cama. Não, eu estava feliz demais, não podia dormir. Além disso, fazia calor nos cômodos muito aquecidos e eu, sem tirar o uniforme, saí de mansinho para o vestíbulo, pus a túnica, abri a porta e fui para a rua.

"Eu saíra do baile antes das cinco horas, mais umas duas horas se passaram enquanto fui para casa e fiquei lá algum tempo, portanto, quando saí, já estava claro. Fazia um tempo típico de carnaval, havia uma neblina, a neve encharcada de água derretia nas ruas e todos os telhados gotejavam. Na época, B. morava no fim da cidade, junto a um vasto campo, numa extremidade havia uma alameda, na outra, um colégio interno para moças. Cruzei a nossa travessa deserta e saí numa rua grande, onde começavam a se encontrar pedestres, carroceiros e trenós cheios de lenha, cujos patins chegavam a raspar na calçada. E os cavalos, que em movimentos regulares, sob os arreios lustrosos, balançavam as cabeças molhadas, e os cocheiros, que, cobertos por umas esteirazinhas, batiam forte no chão as botas enormes ao lado das carroças, e as casas da rua, que na neblina pareciam muito altas, tudo era para mim singularmente doce e significativo.

"Quando cheguei ao campo onde ficava a casa deles, avistei na extremidade, na alameda da direita, algo grande, negro, e ouvi sons de flauta e tambor que vinham de lá. Minha alma cantava o tempo todo e, de quando em quando, se fazia ouvir o tema da mazurca. Mas aquele era outro tipo de música, rude e má.

'"O que é isso?', pensei, e, por um caminho escorregadio que atravessava o meio do campo, segui na direção dos sons. Depois de percorrer uns cem passos, comecei a distinguir, por trás da neblina, muitas pessoas negras. Pelo visto, soldados. 'Um treinamento, na certa1, pensei, e me aproximei, junto com um ferreiro de peliça curta e ensebada e de avental, que carregava algo e andava na minha frente. Os soldados, de uniforme preto, estavam postados em duas fileiras, uma de frente para a outra, com os fuzis em posição de descansar armas, e não se moviam. Atrás deles, estavam o flautista e o tocador de tambor, que não paravam de repetir a mesma melodia desagradável e estridente.

'"O que estão fazendo?', perguntei ao ferreiro, que havia parado ao meu lado.

"'Estão castigando um tártaro por deserção', respondeu o ferreiro em tom zangado, enquanto tentava enxergar a outra ponta das fileiras.

"Fiquei olhando para lá também e vi, no meio das duas fileiras, algo terrível, que vinha na minha direção. Vinha na minha direção um homem nu da cintura para cima, preso por cordas aos fuzis de dois soldados que o conduziam. A seu lado caminhava um militar alto, de túnica e quepe, cuja figura pareceu-me conhecida. Contorcendo o corpo inteiro, tropeçando na neve derretida, o castigado avançava na minha direção sob os golpes que choviam sobre ele de ambos os lados, ora o homem tombava para trás — e então os sargentos que o conduziam preso aos fuzis empurravam-no para a frente —, ora caía para a frente — e então os sargentos, segurando-o para que não caísse, puxavam-no para trás. E, e m se afastar do castigado, o militar alto caminhava a passo firme, ligeiramente trêmulo. Era o pai dela, com seu rosto corado, seu bigode e as suíças brancas.

'A cada golpe, o castigado, como que surpreso, virava o rosto franzido de sofrimento para o lado de onde viera a pancada e, arreganhando os dentes brancos, repetia sempre a mesma palavra. Só quando já estavam bem perto, distingui essa palavra. Ele não falava, mas sim soluçava: 'Irmãozinhos, tenham dó. Irmãozinhos, tenham dó'. Mas os irmãozinhos não tinham dó e, quando o cortejo passou bem junto a mim, vi como o soldado que estava na minha frente deu um passo decidido adiante e, com um zunido, brandiu no ar um porrete antes de golpear com força as costas do tártaro. O tártaro tombou para a frente, mas os sargentos seguraram-no e uma pancada semelhante atingiu-o do outro lado, e de novo deste lado, e de novo do outro. O coronel acompanhava de perto e, olhando ora os próprios pés, ora o castigado, inspirava inflando as bochechas e soltava o ar lentamente entre os lábios em bico. Quando o cortejo passou pelo lugar onde eu estava, vi de relance, entre as fileiras, as costas do castigado. Era uma coisa colorida, molhada, vermelha, antinatural e nem acreditei que pudesse ser o corpo de um homem.

"'Ah, meu Deus', exclamou o ferreiro ao meu lado.

"O cortejo começou a afastar-se, golpeavam sem parar, dos dois lados, o homem tropeçava, se contorcia, e continuavam a bater no tambor e a assobiar na flauta, e sempre no seu passo firme avançava a figura alta, esbelta, do coronel, junto ao castigado. De súbito, o coronel parou e aproximou-se rápido de um dos soldados.

'"Vou ajudar você', ouvi sua voz raivosa. 'Quer errar o alvo, é? Quer mesmo?'

"E vi como ele, com sua mão forte metida numa luva de camurça, bateu na cara de um soldado baixinho, assustado, fraco, por não ter baixado o seu porrete com força bastante nas costas vermelhas do tártaro.

'"Tragam açoites novos!', gritou, virando-se para trás, e me viu. Fez de conta que não me conhecia, franziu as sobrancelhas com ar ameaçador e raivoso, deu-me as costas depressa. Senti tamanha vergonha que, sem saber para que lado olhar, como se eu tivesse sido apanhado em flagrante no ato mais vergonhoso do mundo, baixei os olhos e apressei-me a ir para casa. Ao longo de todo o caminho, em meus ouvidos, ora batia o rufar do tambor e assobiava a flauta, ora ouviam-se as palavras: 'Irmãozinhos, tenham dó', ora eu ouvia a voz arrogante e raivosa do coronel que gritava: 'Quer errar o alvo? Quer mesmo?'. Enquanto isso, no meu coração, havia uma tristeza quase física, que beirava o enjôo, a tal ponto que parei várias vezes e pareceu-me que a qualquer momento ia vomitar todo o horror que entrara em mim por causa daquele espetáculo. Não lembro como cheguei em casa e me deitei. Porém, assim que comecei a dormir, vi e ouvi tudo outra vez, e acordei de um salto.

"Na certa, ele sabe alguma coisa que eu desconheço', pensei a respeito do coronel. 'Se eu soubesse o que ele sabe, entenderia o que vi e isso não me perturbaria.' Contudo, por mais que eu refletisse, não conseguia atinar o que o coronel sabia e só fui dormir ao entardecer, depois de ter ido à casa de um amigo e beber com ele até ficar totalmente embriagado.

"Pois bem, os senhores pensam que concluí então que aquilo que vi era algo ruim? De maneira alguma. 'Se fazem isso com tamanha convicção e se todos o consideram necessário, quer dizer que sabem alguma coisa que eu desconheço', pensava, e me esforçava para descobrir o que era. Porém, como não descobri, não fui capaz de ingressar no serviço militar, como antes desejava, e não ingressei tampouco no serviço civil e, como vêem, não servi para nada, em parte alguma."

"Bem, isso nós sabemos, como o senhor não serviu para nada", disse um de nós. "É melhor dizer: quantas pessoas não serviriam de nada, se não fosse o senhor."

"Ora, isso é uma tolice completa", exclamou Ivan Vassílievitch, com irritação sincera.

"Bem, e o amor?", perguntamos.

"Amor? A partir daquele dia, o amor começou a minguar. Quando ela, como lhe acontecia muitas vezes, com um sorriso no rosto, punha-se pensativa, na mesma hora eu me lembrava do coronel na praça e me vinha uma sensação tão incômoda e tão desagradável que passei a encontrá-la cada vez menos. E assim o amor deu em nada. Vejam como são as coisas e o que transforma e governa a vida inteira de um homem. E os senhores dizem...", concluiu ele.


(1) Tsarina da Rússia entre 1741 e 1762 (N.T.)
(2) Escritor francês (1809-1890) (N T.)
(3) Em francês no original: refere-se ao tsar Nicolau I que reinou de 1825 a 1855.
(N. T.)



Sobre o Autor


Leon Nikolaievitch Tolstoi, genial escritor russo, nasceu em 1828 em Iasnaia Poliana. Filho de uma importante família ligada aos Czares, ficou órfão ainda criança. Frequentou a Universidade de Kazan, onde estudou línguas orientais e direito. Em 1847, por herança, tornou-se senhor de vastas terras em Iasnaia-Poliana, daí porquê seja também conhecido por "Conde de Tolstoi". Depois de ter servido no exército, em 1856, viajou pela Europa visitando vários países, regressando então à sua terra natal para administrar suas terras e dedicar-se à literatura. Em 1861, voltou novamente a França para visitar seu irmão que se estava doente, aproveitando para se encontrar com Proudhon. Com uma vida pessoal cheia de conflitos e uma personalidade dividida, Tolstoi aproximou-se, gradualmente, de uma posição pacifista e anarquista, recusando toda forma de governo e poder. Na sua terra natal criou uma escola marcadamente libertária, próxima das experiências de Ferrer e da Escola Moderna, tendo pessoalmente escrito os livros usados nas salas de aula. Seus textos autobiográficos "A Minha Confissão" e "Qual é Minha Fé" foram apreendidos mas, mesmo assim, tiveram ampla difusão clandestina. Perseguido e excomungado pela Igreja, seus últimos anos são de engajamento social. Os escritos filosóficos influenciaram o aparecimento de comunidades e de uma corrente de anarquismo cristão, sobretudo em França, Holanda e EUA. Exerceu também, juntamente com Kropotkin e Thoreau, forte influência sobre um dos mais importantes pacifistas modernos: Gandhi, com quem chegou a manter correspondência. Faleceu em 1910.

Tolstoi, profundo pensador social e moral e um dois mais eminentes autores da narrativa realista de todos os tempos, depois das suas primeiras obras — entre outras, as autobiográficas "Infância" (1852) e "Contos de Sebastopol" (1855-1856), baseada em suas experiências na guerra da Criméia —, escreveu "Guerra e paz" (1865-1869) e "Anna Karenina" (1875-1877). Considerado um dos romances mais importantes da história da literatura universal e uma das obras-primas do realismo, "Guerra e paz" é uma visão épica da sociedade russa entre 1805 e 1815. Dela emana uma filosofia extremamente otimista, que atravessa os horrores da guerra e a consciência dos erros da humanidade.

Entre os romances breves de Tolstoi, o mais importante é "Anna Karenina", um dos melhores romances psicológicos da literatura moderna.

Em "Uma confissão" (1882), descreve sua crescente confusão espiritual e, após o eloquente ensaio "Amo e criado" (1894), escreveu "Que é a arte?" (1898), no qual condena quase todas as formas de arte, incluindo as próprias obras. Defendeu uma arte inspirada na moral, na qual o artista comunicaria os sentimentos e a consciência religiosa do povo. A partir de então, escreveu numerosos contos breves, sendo o mais conhecido "A morte de Ivan Ilitch" (1886). Outras obras de destaque são: "A sonata de Kreutzer" (1889) e seu último romance, "Ressurreição" (1899).


O texto acima ("Póslie bala", publicado em 1903), foi extraído do livro "Contos de amor do século XIX", Cia. das Letras — São Paulo, 2.007 - pág. 446 tradução de Rubens Figueiredo, organizados por Alberto Manguel.





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