O Congresso Nacional dos
Jornalistas realizado em Ouro Preto (MG) recebeu um público de mais de 500
pessoas entre jornalistas e convidados. Na palestra inicial (27/08), A filósofa
Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) falou sobre o tema “Mídia e
Poder” e mostrou haver nos dias de hoje “um certo atrelamento da mídia ao poder
constituído” Leia e assista essa mulher que não se cala perante uma mídia
autoritária.
I. Democracia e autoritarismo
social
Estamos acostumados a aceitar a
definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das
liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam
a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da
democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição
econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos
que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada
como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia,
medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos
competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida
a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em
partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos
representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os
problemas econômicos e sociais.
Parte I
Ora, há, na prática democrática e
nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e
superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e
gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples ideia de um regime
político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma
sociedade e, assim, considerá-la:
1. Forma sócio-política definida
pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria
(direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas,
aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são
iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos
obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa
democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde
o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de
seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. Forma política na qual, ao
contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário,
buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não
é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma
outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os
conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?
3. Forma sócio-política que busca
enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade
e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da
legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo,
para isso, a ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais).
Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço
político para reivindicar a participação nos direitos existentes e, sobretudo
para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam
anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que
fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os
fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
4. Graças à ideia e à prática da
criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência
de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela
capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias
normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da
liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição
positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita
aos cidadãos instituir contra poderes sociais por meio dos quais interferem
diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. Pela criação dos direitos, a
democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças
temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e,
consequentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira
que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao
tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de
novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade
democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa
de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela
possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;
6. Única forma sócio-política na
qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas
sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou
só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização
jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca
da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á
democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os
excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;
7. Forma política na qual a
distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis
e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das
eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não
significam mera “alternância no poder”,
mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e
que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para
isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas
eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do
poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política:
eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não
tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários
do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade
— e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições,
partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade
da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio
regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma
criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se
como uma contra poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação
estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os principais traços
da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para
instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é
estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o
Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista
e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da
representação — o representante não é
visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de
favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque
não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três
princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo,
oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura
temporal da ação política.
Além disso, social e
economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das
camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes,
bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por
definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem
deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou
específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não
conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de
carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os
indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é
reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim,
a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como
obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
A esses obstáculos, podemos
acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento
do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se
da eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder
público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em
proveito do capital; a economia e a
política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos
investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos
direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do
mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços,
privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio,
aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e
o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito
democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação
social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.
Parte II
II. Os meios de comunicação como
exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do
poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o
econômico e o ideológico.
Do ponto de vista econômico, os
meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são
empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada
globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca
visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio
na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração
(os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor
das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição
nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos
levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria
elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria
de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de
telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc..
No caso do Brasil, o poderio
econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado,
produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que
Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada
das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a
parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam
fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados,
apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a
comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue
contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a
lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de
expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e
avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam
informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é
roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.
A isonomia e a isegoria são também
ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato,
do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos
a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob
a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia
social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade
técnico-científica.
A ideologia da competência pode
ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar
e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso
competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir,
assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido
falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e
precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção
principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um
conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem
falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que
devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a
divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os
incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.
Enquanto discurso do
conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de
comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la
como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio,
na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das
últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver.
O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária,
educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas
apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu,
meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar
dinheiro e subir na vida. O principal
especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma
espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que
explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais,
políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e
rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros — em suma, o chamado “formador de opinião” e
o “comunicador”.
Ideologicamente, o poder da
comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e ideias, pois,
dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o
formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu
poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais terríveis
desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos
midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio
de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção
de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução
Francesa, Hegel considerou que uma de
suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que
os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a
mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a
presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da
culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e
morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para
assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para
regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade
e da igualdade que definem a sociedade democrática.
Parte III