sexta-feira, 21 de setembro de 2012

Memorias de um asilo II : inferno

Está chovendo desde o começo da tarde, ainda sonolenta, vou de encontro a janela; por alguns instantes fico observando as pessoas passando pela rua, todas com guarda-chuvas e bem agasalhadas, reparo alguns poucos carros que passam espirrando água do asfalto molhando turistas no ponto de ônibus. É primeiro dia de Páscoa, aqui, só eu envolta com meus pensamentos, ainda com trajes de dormir. Ao longe, ouço atentamente uma longa série de melodias executadas com precisão por uma orquestra do café situado do outro lado da rua. Está um tanto escuro e frio no quarto; acendo a luz me certificando das cobertas sobre minha cama. Minha estimada insônia ainda não cedeu sua trégua, por isso vago pelos corredores dessa instituição. Passo despercebida; ao lado da enfermaria sem me deter nos demais quartos, me certifico se todos os pacientes estão dormindo. Prossigo em frente sem dar muita importância para as pessoas, que ainda perturbadas, dopadas em meio ao tempo, optaram descansar nos empoeirados bancos desta prisão. A ala da terapia ocupacional está vazia; em meio tom improviso longamente, sem pressa, no piano do salão central, serenas melodias, doces e sutilmente melancólicas, que compensam minha divina solidão. É incrível como a música tornara-se tão presente em minha vida, chegando as vezes ser meu único conforto. Tudo estrategicamente perfeito, um clima um tanto propício para uma seção nostálgica; e de fato tenho que confessar ser essa uma bela ocasião para uma breve reflexão do passado. Sinto que as vezes pensamentos adentram em mim, despertando cálidas feridas e saudosos momentos em meu espírito. Minha memória não foi totalmente debilitada, por isso, conservo boas lembranças de minha infância, possivelmente as melhores em minha pérfida existência.

Sempre fui uma criança prodígio; fui educada em Naumburg com meu irmão mais novo, num meio intelectual, uma dieta rica de alimento mental e inspiração moral. Lembro que ao contrário das outras meninas da minha idade, eu tinha o costume de acordar geralmente antes dos meus pais, seguia até o quarto deles e por alguns minutos os observava dormindo. Meu pai por sua vez regularmente acordava antes da minha mãe, era incrível, ele podia dormir a hora que fosse, ainda assim despertava cedinho. Havia em nosso lar uma importância exagerada atribuída ao lado religioso; mesmo não acreditando, me agradava muito as formalidades cerimoniosas, e a constante prática de orações desde o café da manhã até a hora de se deitar.

Dos muitos livros que ainda hoje preenchem minha biblioteca, a grande maioria, herdei do meu pai; grandes gênios da literatura e filosofia eu tive contato através dele. Delicado e simetricamente cultivado, rigidamente ele fez seus estudos em Pforta, depois em bona e em Leipzig. Tenho que confessar que demorei, um certo, tempo para poder apreciar a grandeza artística contida nos livros. Inúmeros gênios facilmente eram encontrados no seu imenso acervo, de Honoré de Balzac, literário francês a Nietzsche grande vulto da filosofia alemã. Também posso citar autores que durante toda a vida buscaram de maneira incansável o esclarecimento espiritual e secular, tais como: Platão, São Paulo e o Pai da Psicanálise, Sigmund Freud. Outros poetas e grandiosos pensadores como Arthur Rimbaud e Paul Valéry, ambos franceses- meus prediletos- o inglês Walter Pater e Camões que souberam expressar uma sensibilidade humana, como poucos, davam um ar sagrado em seu sublime escritório. Enfim, a biblioteca do meu pai era uma fonte inesgotável de sabedoria dos mais diversos gêneros literários.

Nunca me faltou nada, felizmente meus pais gozavam de uma razoável condição social; se bem lembro não precisaram de esforços para alcançarem seu invejável patrimônio, herdaram toda riqueza dos meus avós, donos de várias empresas de advocacia. Meu avô, velho burguês, era sinônimo de elegância no auge dos seus 72 anos; foi com muito esforço e árdua persistência que ele conseguiu alcançar e manter sua fortuna pessoal estimada em bilhões de dólares. Teria muito orgulho dele se não fosse a maneira machista – antiquária como tratava sua esposa, Sr.ª Salomé, madrasta do meu pai. Se eu pudesse voltar atrás certamente teria passado mais tempo com ela, que assim como poucos do meu circulo familiar era uma pessoa adorável. Das casas que morei tenho poucas recordações, pois minha mãe ostentava o luxo de não permanecer muito tempo em um bairro ou cidade. Em consequência disso tive poucos amigos. Na ilha de Manhattan as ruas eram elegantes, os nova-iorquinos viviam em boas condições; belos museus e teatros, a presença de turistas fazia parte do cotidiano deste lugar. Ainda me recordo do peculiar trem no metrô dessa cidade, levava apenas alguns minutos para percorrer o trajeto do centro de Manhattan até meu bairro que, alias não lembro como se chamava, afinal naquela época meu pensamento não estava plenamente maduro.

Apesar da distância que hoje tenho do meu pai, um fato alcançado devido às exaustivas discussões, deixo as boas lembranças, ainda que raras, ofuscarem qualquer que seja a mágoa. Como posso deixar de lado alguém que foi tão especial em minha vida? Tão relevante na minha formação. Ainda lembro das noites em que ele convidava alguns amigos para aprofunda-se por horas e horas em suas conversas intelectuais que abrangia desde temas literários até memorias e questões políticas e sociais. Meu pai era de opiniões rústicas inflado de severa disciplina, mas, sei que me amava da forma dele, contundente, em silêncio ou em palavras ásperas. Com o passar dos anos cheguei a conclusão que as boas lembranças não se dissipam nem envelhecem, pelo contrário, ganham vida e no decorrer do tempo adquirem luz própria, trazendo calma, paz e uma íntima serenidade nessa ferida que é o existir.

Mas lembranças são só lembranças, não tem substancia, nem justificam o que vivo quase de maneira indizível o presente, como cheguei aqui? Não sei ao certo, nem quando, nem ao menos o motivo; creio que nesse momento a pergunta mais especifica seria outra: será que um dia encontrarei o caminho de volta? Ou melhor, existiria um caminho de volta?  Lástima infiel, milhares de dúvidas estão constantemente invadindo minha cabeça. Elas me pesam me castigando com toda ipseidade. Tenho um olhar distante, vazio, que às vezes expressa serenidade ou delirante apatia. Existe em mim várias almas, uma multiplicidade de sentimentos; por esse motivo sofro mais que o suportável. Gosto de pensar o mundo como uma incrível mágica, a mais fascinante de todas, estou sempre tentando descobrir seus segredos, mesmo desconhecendo seu autor. Porém, tenho medo de me sufocar nas verdades que ele tanto oculta. Devo acreditar em verdade? E se for o caso de existir uma? Que sirva de fundamento para tudo que existe? Mesmo assim não acreditaria que a mesma permaneça desejável depois de lhe temos tirado seu véu; depois de destruímos sua mascara e, olha que não são poucas. Difícil definir com clareza o sentimento que nos toma feito assalto quando vivenciamos o novo, aquilo que assusta por ser estranho. Seria esse o motivo da minha estadia nesse cemitério anacrônico? O que pensar da vida nesse momento? Uma lúdica tragédia que definha meu ser a cada nascer do sol? Paciência, foi o que me disseram, a primeira vez é sempre assim, geralmente esperamos tanto da vida, e a mesma gloriosa em seu encanto e mistério, sempre nos presenteia com suas possibilidades, um universo de possibilidades, uma gama de paradigmas em forma de esperança, sim, uma infinidade de possibilidades que ainda não vingaram: a possibilidade de uma bela família, uma boa casa de campo, lindos filhos, a possibilidade de uma boa vizinhança, o reconhecimento de um bom emprego, amigos, uma boa festa, um bom final de semana, um agradável jogo de futebol, uma bela pessoa que passa, por acaso ao nosso lado, uma boa refeição, um ótimo livro, uma agradável  conversa, um inverno nostálgico, um exuberante jardim que transborde vida, uma desejável companhia, um merecido conforto, uma bela poesia, uma majestosa pintura, uma saudável caminhada, uma boa noite de sono, ou até mesmo um alívio após um cigarro. Enfim, nossa existência tem fome de ser e existir mergulhada em possibilidades.

Porém, uma pergunta não para de palpitar em minha alma: e quando tudo perde sentido? Quando tudo para? Onde assentar nossa alma? Como encontramos conforto após uma lágrima? Onde refrigera nosso querer? Em qual instante deixamos de ser? Talvez, sei lá, quando não há perspectivas. Quando tudo brutalmente é esgotado; exatamente ao vazar da vida todo o seu perfume, todas suas possibilidades, todo seu sentido, nessa hora deixamos de ser e nossas escolhas vivem de fantasmas, envelhecemos nosso espírito, vagamos pelo vale do esquecimento. Saímos de um labirinto para findar em uma rústica caverna. Um quarto, um asilo, último abrigo, um mundo pessoal. Um lugar onde os instantes são eternos, as horas rastejam, e ninguém pode ver seu corpo definhar vagando sem rumo feito um ser das trevas.

Demônios - para isso estou aqui. Pois é, eles existem e estão condenados a vaguear em nosso mundo. O mais irônico disso tudo é que um deles veio passar as férias nesse asilo. Resultado?  Ruídos inexplicáveis, luzes que se acendem e apagam sozinhas, baixa de temperaturas repentinas, objetos que movem-se sozinhos, sombras dançando pela asilo, vozes ou lamurias que não sabemos de onde vêm…Quando aqui cheguei acontecimentos bizarros e, muitas vezes violentos começaram a ocorrer com uma certa regularidade. É o que eu denomino de “arruaça paranormal”. Mas, qual o sentido de tanta arruaça paranormal? Será algum tipo de desabafo por estarem condenados a vaguear sobre a Terra? Vingança? Algum tipo de ressentimento pelo destino inevitável ao inferno? Faz sentido- Pelo que sei o inferno não é um lugar com boa vizinhança. Sobre o inferno C. S. Lewis uma vez escreveu: "Não há nenhuma doutrina que eu removeria de mais bom grado do cristianismo do que isto, se eu tivesse o poder. Mas essa doutrina tem o pleno apoio das Escrituras, e sobretudo das próprias palavras do nosso Senhor." Segundo o poeta Dante Alighieri na depressão, que se abisma em nove círculos concêntricos, podemos encontrar o inferno. Um lugar onde os condenados estão disseminados.  Entre o mundo da matéria e o da imaterialidade. Não apenas em suas palavras, mas desde muito tempo, atravessando as eras mitológicas, nos chega a ideia de tal lugar - uma região subterrânea onde padecem as almas daqueles que não tinham praticado o bem em suas existências terrenas. Segundo as lendas as almas imundas estariam condenadas a ficarem prisioneiras, eternamente sofrendo suplícios e dores terríveis naquele chamado Hades pelos gregos e Inferno pelos católicos e pelos protestantes. Certamente um lugar que ninguém deseja ir. Houve quem defendesse que a permanência da alma no inferno era temporária- algum tipo de hotel de quinta categoria- que segundo os Evangelhos, a pobre alma poderia sair em um processo de ressurreição. Enfim, espero que esse asilo não se transforme na casa da abadia inglesa de Borley, século XX. Para muitos o lugar mais assombrado da Inglaterra, conhecida pela sua música medonha que se ouvia entre as suas paredes e pelo monge que caminhava pelo átrio. Uma história e tanto. Espero que o rumo desse lugar seja mais louvável tipo pacientes repousando sem o incômodo de alguma “entidade desocupada” . Geralmente clínicas carregam energias pesadas. Qualquer um pode sentir isso.  A pessoas aqui tentam fingir- Nisso elas são boas. Mas comigo a coisas são diferentes. Não estou aqui para isso: retratar absurdos bizarros.  Tenho um dom – mandar entidades vagabundas para seu lugarzinho no inferno. O curioso disso tudo é que eu posso tanto ser uma pessoa normal  escondendo um monstro desagradável em meu ser, quanto posso ser um neurótica bem vestida em uma camisa de força . Tudo faz parte de um jogo. De quando em quando sentindo os estertores da morte em minha garganta, como um mal está depois de um vômito interminável. A vida não me jogou aqui de paraquedas, fraca, solitária, sem horizonte.  Foi exatamente esse o lugar escolhido por Mawilda e seu irmão para meu primeiro trabalho. Durante anos de teoria estava mais que na hora da prática.

04:30 da manhã, bem agasalhada, dou início um passeio pela aleia junto ao muro da enfermaria. Um sol meio toldado me esquenta e reflete nas janelas intensificando as esculturas do jardim. Pássaros cantam e embelezam a vista. Deixando a sala de visita atravesso um pequeno jardim, tão belo, por causa da estação de ano, todas a flores já estavam encantadoras. Tudo tão belo! Estou cansada...Ainda tenho algumas horas para dormir. Mais tarde quem sabe encontrar minhas “crianças imaginarias” e mandar um demônio de volta para o inferno.

- Já mandou alguém para o inferno? Essa pergunta não me saia da cabeça. Parecia impregnada em meu juízo. Ainda tenho dúvidas, tenho minhas dúvidas. Lanço uma olhadela pelos arredores da clínica e em seguida contemplo um leve nevoeiro com visível ar de satisfação. Ao fundo ouço conversas  rotineiras entre funcionários e pacientes e quando abro os olhos por um instante, ao longe pela lateral mawilda, segurando a mão do seu irmão, acenava para mim. Meus garotos. O que seria dessa frágil garota sem vocês? Quando aqui cheguei desorientada apenas com cinzas em meu coração aprendi como posso ser uma outra pessoa levando para aos meus desafetos o fogo dos meus olhos.  Algo me diz, que esta noite terei uma conversinha com um certo demônio.

Por  Claudio Castoriadis

Sobre o Autor:
Claudio Castoriaids Claudio Castoriadis
é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura >
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