"Mil cairão ao seu lado
Dez mil a tua direita
Mas tu não serás
Atingido "
Dez mil a tua direita
Mas tu não serás
Atingido "
salmos 91
Certa vez me perguntaram qual era o gosto da solidão: hospital! Respondi de forma simples com um sorriso desdenhoso no rosto. Sei que esse tipo de pergunta suscinta cautela nas palavras, afinal, falar de solidão é descrever o resultado da soma dos mais atormentados sentimentos que emanam da profunda angústia do ser. O ser atirado em um mar de possibilidades e desafios de continuar sendo . Desde minha última internação tento ser breve quando as perguntas me parecem fúteis comumente empregadas no protocolo de decoro desses grupos de autoajuda- esses lugares onde pessoas amargas sutilmente “patéticas”, geralmente com cheiros desagradáveis, se encontram para desaguar suas lástimas. Pobres almas, mal sabem elas que a ferida da existência não tem cura, as chagas dos nossos afetos devoram qualquer possibilidade de felicidade. Ridículos por não tomarem conta da própria existência? E quem deveras sabe tomar conta de si? Falando em existência, quando encontrarei uma alma nesse vasto mundo que realmente soube o sentido pleno dessa responsabilidade? Ontem minha noite foi longa, resfriado acompanhado por náuseas, ânsia de vômito. Depois de ter encontrado um agradável livro, coloquei mais lenha na lareira. Eu tava pressentido uma noite daquelas. Minha irmã, cabelo ruivo e ondulado, de boa aparência e bom coração não fazia economia de carinho: Preocupada com meu estado veio ao meu quarto trazendo uma capa, na qual eu me embrulho. Detesto quando estou assim, frequentemente fico olhando para o relógio, minha vista fica pesada, não consigo dormir, os meus passos parecem pesa toneladas, nem mesmo consigo ficar em um canto parada durante muito tempo, por horas uma irritação borbulha dentro de mim. Vez por outra, deixo no ar uma risada histérica, boba, sem motivo. Logo em seguida súbitas torces se alternam com o silêncio da madrugada. Com o chegar da noite, quimeras atormentam meu silêncio. Não consigo descansar os olhos- tenho medo das coisas que vejo e ouço quando os fecho, pessoas, lugares, vozes, momentos queimam meu corpo depauperando meu equilíbrio. Escórias dos meus desejos, contra todos eu tenho meu escudo e minha espada: conhecimento e arte- pelo menos foi o que me restou. O que seria de mim sem o alívio da arte? Digo mais, o que seria do mundo desprovido da arte? Gosto de pintar, dizem que levo jeito pra coisa. Um ótimo passa tempo. Comecei pintando apenas paisagens, muito influenciado por amigos de infância. Obcecado com a busca do realismo, estudei com rigor, os grandes mestres do gênero. Gosto do meu trabalho- centraliza minhas ideias. Dependendo do momento um único quadro pode levar até 300 horas de dedicação para ser finalizado. Mas que tenho eu com o tempo? Não me admira a ineficácia do tempo.
Solidão, solidão... Quanto me pesa e anseia aniquilar
minha existência. Hoje cedo tive a impressão de ter ouvido a voz do meu pai.
Quanto tempo que não o vejo- Sei que essa ideia beira ao ridículo, mas ainda
lembro o caminho da sua casa. Queria tanto não lembrar. Em meus sonhos você
ainda existe, você me vem com a mais bela flor, cultivada de um monte tão
medonho. Assim como deixo os ventos do norte atiçar minha face, te cultivo em
meus livros, naquela rua, nas músicas, nas palavras que ainda ecoam em meu
imaginário. Eles estão rindo de mim. Enquanto meu rosto queima no asfalto,
servindo de caricatura para os porcos, eu sei, estão rindo de mim. Egoístas,
não sou como vocês, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis. Quem nos dias
de hoje não se deixa levar por um tipo de complexo de Deus? Afinal me sinto tão
superior quanto muita gente. Estou no chão, sei disso, sinto a sombra da morte se
aproximando, minha visão falha, enquanto meu corpo se definha. Sou responsável
por cada praga das minhas escolhas. E minha doença nada mais é que a extensão
de um mundo doente e neurótico.
Ontem eu sentir o peso da existência. Parei, sentei, em nada pensei. Dizem que o espírito das nobres criaturas bóia no olhar; mas não creio que essa máxima se aplique em alguém onde apenas insensibilidade reside nos olhos. De um lado uma
fileira de livros, do outro, apenas o silêncio; nas minhas costas o fardo da
vida. Tenho uma sombra, ela me tem, eu tenho um todo que em nada se justifica.
Que estranho... Quem faz a pergunta é minha alma, porém, quem sofre com as
respostas é minha forma. Como isso é possível? Não era pra ser assim, não foi o
combinado. Vejo tudo fora do lugar, os moveis a esculturas que ainda sobraram.
Ontem mesmo eu pensei em desistir, fraca e desamparada parei, e debruçada em
uma montanha especulativa eu pensei, pensei por horas... Ontem eu pensei. Mas
que fique bem claro, não pensei por pensar, não foi mais um pensar qualquer,
trivial, sem sentido. Pensei com a força de quem acredita no sagrado. Pensei
como uma sedentária doente e angustiada. Era dia, ainda existia luz; procurei
vítimas, procurei culpados, nada encontrei, eu me encontrei, no acaso, nas
dúvidas, no início do fim, era meio dia, era meia noite, era meio termo... Era
quase nada, melhor dizendo: era um “eu” no meio da estradada. Há... o fim,
palavra tão rica de significados cujo gosto amargo e indesejado filtra minha
existência toda vez que penso e me perco, em pensamentos que retratam as ideias
de uma mentirosa, uma rainha, um conceito perdido no meio, em cima, na frente,
de lado, no centro, no nada. Mas ainda estou viva, tenho vontade de vida, ora,
tudo que existe tem vontade de vida, cada fio do meu cabelo, cada batida do meu
coração clama por vida, cada parte do meu corpo tem vontade de vida. Porém,
faço tudo errado, eu ainda penso no nada. Fazendo isso estabeleço uma relação
circular onde quem questiona e quem é questionado voltam sempre ao seu ponto de
partida: a dúvida. Tenho medo, onde tudo isso vai parar? Quantas vezes não me
fiz essa pergunta. Enfim, ainda tenho motivos pra sorrir.
Primeira luz do amanhecer, observo as crianças da
vizinhança brincando pela redondesa. Agora a lembranças vinham densas e com
mais rigor. Uma delas faiscou nitidamente: uma criança, que ao contrário das
que brincavam na minha varanda, essa se encontrava sozinha desfrutando da sua
solidão. Se bem que “solidão” não seria
uma palavra adequada em minha infância. Existia algo diferente em mim. Sempre
bem vestida, cabelo cobrindo os olhos, pele tão clara que parecia tremeluzir
corando a melancolia do meu semblante. Eu tinha uma postura arrogante como nunca
vira antes. Eram poucas as minhas palavras quando muito, eu fazia questão de me
expressar com o lábio superior curvado numa linha de pura malícia. Eu tinha
todos os motivos para meu sentimento de grandeza. Afinal, o fato é que eu não
estava só. Havia algo de extraordinário, acontecendo em minha vida. Dentre
todos os segredos da minha infância, um ocupava um lugar sagrado. Meu maior
segredo implica no maior presente da natureza para mim: Mawilda e seu pequeno
irmão. Com eles, os sentimentos mais ponderados são os que trazem a mais densa
tempestade.
Foi preciso mais de anos para minha iniciação no universo
místico desses dois amigos imaginários. Muito estudo e disciplina, mais nunca
solitária, eles estavam sempre do meu lado. Por vezes cheguei a pensar que
minha razão estava beirando no limiar da loucura. Porém, segundo eles, eu sou
diferente, um tipo especial de ser; minha alma e espírito assim como eles são
correlato da natureza. Tudo faz parte de um todo, não existe bem nem mal e sim
uma gloriosa harmonia. Eles são irmãos, tão sempre juntos. Desde o primeiro
momento que tive contato com os dois, a união deles sempre me fascinou.
Atraentes, misteriosos, meigos. Entre todas suas peculiaridades a que mais me
deixou inquieta foi saber que eles formam um casal de crianças sem malícia:
lindos cuja aparência passa serenidade, ele aparenta ter seus 11 anos de idade,
ela demonstra passar dos 14. A garota se chama Mawilda o garoto até hoje ainda
não sei o nome.
Tímido e desajeitado ele apenas mantém contato com sua
irmã. Estão sempre conversando, posso ouvi-la, mas ele faz questão de ser
reservado. Tentei por varias anos ouvir sua voz, mas, cauteloso ele sempre tratou
de falar em baixo tom. Tudo meu conhecimento no
que se infere a magia eu devo a ele, centenas de livros ele resmunga todos os
dias para a irmã e ela trata de passar tudo para mim. Nunca toquei em um livro.
Com embasamento e conhecimento sobre poderes ocultos ele se mostra ser uma
entidade inquieta e temperamento peculiar. Uma inaudita postura. Impossível auscultar aquele espírito, assim como era impossível classificar aquela natureza. Foi difícil, mas me encantei por
esses irmãos tão carismáticos. Eles estavam por toda parte, em todo momento de
minha vida, nos bons e nos ruins. Porém visíveis apenas para mim. Quando eu
estava em sala fazendo prova lá estavam eles, bem ao lado do professor, fazendo
pirraça não apenas com o velho, mas com os demais alunos somente pra divertir
meu dia; nas festas que ocorriam com frequência na faculdade eles também
aprontavam da forma mais meiga apenas para chamarem minha atenção; e como
esquecer o dia em que Mawilda fez uma garota esnobe que estava sempre pegando no
meu pé perder a voz em plena oratória de uma peça na faculdade? Como não gostar
de duas criatura tão amigáveis? Nunca falei sobre eles pra ninguém, esse é
nosso segredo. Eu sei que não convivemos mais tão próximos da natureza como
nossos ancestrais, por isso fica bem mais difícil a compreensão do todo que nos
cerca, tudo que é sagrado e mágico na natureza. Sim! Eles são parte da natureza,
assim com “eu” e tudo que faz parte da realidade. Considero os dois uma grande
bênção dos céus, bênção dos antigos deuses, eles me deram esperança e sentido em
um mundo tão cruel, cada palavra de Mawilda de consolo brilha em sua
grandiosidade, e cada vez que seu pequeno irmão olha pra mim ele agracia com
luz e equilíbrio meus caminhos. Mas certo dia mawilda me fez a seguinte pergunta:
___Já mandou alguém para o inferno? Seus lábios crisparam-se sarcasticamente. E minha vida? A partir dessa pergunta nunca mais foi a mesma.
Por Claudio Castoriadis
Claudio Castoriadis |