Entrevista concedida ao jornalista João Peres, publicada na Rede Brasil (outubro de 2010)
Em
entrevista exclusiva à Rede Brasil Atual, a professora de filosofia da
USP aponta setores ruralistas e classe média urbana como focos de
anti-Lula. Ela faz reiteradas críticas à ameaça à liberdade de expressão
provocada pela concentração dos meios de comunicação.
Marilena
Chauí pensa que a velha mídia está nos seus estertores. A filósofa e
professora da Universidade de São Paulo (USP) entende que o surgimento
da internet, o crescimento das alternativas e as atuais eleições
delineiam o fim de um modelo.
A professora, que deixou de
escrever e de falar para a velha mídia por não concordar com a postura
de vários desses veículos, entende que a imprensa tem papel fundamental
para a ausência de debate de temas-chave nas atuais eleições,
alimentando questões que favorecem à candidatura de José Serra (PSDB).
Ela
considera que não é possível falar de democracia quando se tem o poder
da comunicação concentrado em poucas famílias, sem que a sociedade tenha
a possibilidade de contestação. Após ato pró-Dilma Rousseff (PT), na
Faculdade de Direito do Largo São Francisco, no centro da capital
paulista, a filósofa manifestou à Rede Brasil Atual que os ruralistas e a
classe média urbana são os setores que alimentam o ódio a Lula.
Marilena
Chauí aponta, sempre em meio a muitos gestos e a uma fala enfática, que
o presidente jamais será perdoado. O motivo? Combateu a desigualdade no
país.
Acompanhe a seguir os principais trechos da entrevista:
O
único ponto aparente de consenso entre os institutos de pesquisa é
quanto à aprovação do governo Lula. Que grupos estão entre os 4% da
população que consideram ruim ou péssimo o desempenho do presidente?
É
um mistério para mim. Tudo que tenho ouvido, sobretudo no rádio, em
entrevistas sobre os mais diversos temas, vai tudo muito bem. Os setores
que eu imaginaria que diriam que o governo ruim não são.
Surpreendentemente.
Mas há dois setores que são "pega pra capar".
Um é evidentemente a agroindústria, mas é assim desde o primeiro
governo Lula. Eles formam esse mundo ruralista que o DEM representa. Não
são nem adversários, são inimigos. Inimigos de classe.
O segundo
setor é a classe média urbana, que está apavorada com a diminuição da
desigualdade social e que apostou todas suas fichas na ideia de ascensão
social e de recusa de qualquer possibilidade de cair na classe
trabalhadora. Ao ver o contrário, que a classe trabalhadora ascende
socialmente e que há uma distribuição efetiva de renda, se apavorou
porque perdeu seu próprio diferencial. E seu medo, que era de cair na
classe trabalhadora, mudou. Foram invadidos pela classe trabalhadora.
Os
trabalhadores têm reconquistado direitos e, com isso, setores do
empresariado reclamam que há risco de perda de competitividade pelo
mercado brasileiro.
Isso é uma conversa para a campanha
eleitoral. É coisa da Folha, do Estadão, do Globo, da Veja, não é para
levar a sério. E se você for lá e pedir para provar (que perderia
competitividade), vão dizer que não falaram, que foi fruto das
circunstâncias. Eles sabem que é uma piada isso que estão dizendo, não
tem qualquer consistência.
A senhora passou por uma
situação parecida à da psicanalista Maria Rita Kehl, agora dispensada
pelo Estadão por ter elogiado o governo Lula...
Não foi
parecida porque não fui demitida. Eu disse a eles que me recusava a
escrever lá. Tanto no Estado quanto na Folha. Tomei a iniciativa de
dizer a eles que não teriam minha colaboração.
Quando li o artigo
da Maria Rita Kehl, pensei mesmo que poderia dar algum problema. Como é
que o Estadão deixou o artigo sair? Era de se esperar que houvesse uma
censura prévia.
Agora, se você tomar o que aconteceu nos últimos
oito ou nove anos, vai ver que houve uma peneirada e uma parte das
pessoas de esquerda simplesmente desistiu de qualquer relação com a
mídia. Outras tiveram relação esporádica em momentos muito pontuais em
que era preciso se expressar publicamente.
Houve, em um primeiro
momento, um deslocamento das pessoas de esquerda para o Estadão, mas um
deslocamento que não tinha como durar porque o jornal não tinha como
abrigar esse tipo de pensamento.
Desapareceu para valer qualquer
pretensão da mídia até mesmo de se oferecer sob uma perspectiva liberal.
E sob uma perspectiva democrática. É formidável que no momento em que
dizem que nós, do PT, ameaçamos a liberdade de imprensa, eles demitam a
Maria Rita.
O que acho, com o segundo turno das eleições de Lula e
as eleições da Dilma, é que há um estilo de mídia que está nos seus
estertores. O fato de que haja internet e mídia alternativa que se
espalha pelo Brasil inteiro muda completamente o padrão.
Passa-se
de jornais que tinham função de noticiar para jornais que têm a função
de opinar, o que é um contrassenso. A busca pela notícia faz com que não
se vá mais em direção ao jornal, vá se buscar em outros lugares.
Em
períodos eleitorais, tem sido recorrente a associação entre mídia e
partidos políticos. Qual a implicação disso na tentativa de consolidação
da democracia?
Isso é o que atrapalha a democracia do
ponto de vista da liberdade do pensamento e de expressão. O que
caracteriza uma sociedade democrática é o direito de produzir informação
e de receber informação, de modo que possa circular, ser transformada. O
que se tem é a ausência da informação, a manipulação da opinião e a
mentira.
Acabo de ver em um site a resposta do Marco Aurélio
Garcia (um dos coordenadores de campanha de Dilma) à manchete da Folha.
Como é que a Folha dá manchete falando que Dilma vai tirar a questão do
aborto do programa de governo se essa questão não está no programa? É
dito qualquer coisa.
Desapareceu o compromisso mínimo com a
verdade, o compromisso mínimo com a informação. É uma coisa de partido,
puramente ideológica, perversa, de produção da mentira. Isso me lembra
muito um ensaio que Hannah Arendt escreveu na época da Guerra do Vietnã.
Ela comentava as mentiras que a TV, o rádio e os jornais apresentavam.
Apresentavam a vitória no Vietnã, até o instante em que a mentira
encontrou um limite tal nos próprios fatos que a verdade teve que
aparecer. Ela chamou isso de crise da República, que é quando tem a
mentira no lugar da informação. Ou seja, a desinformação. Isso não serve
para a democracia.
O governo Lula teve, internamente, a
convivência de polos opostos. Talvez tenha sido o primeiro a ter, por
exemplo, Ministério de Desenvolvimento Agrário voltado a agricultura
familiar e dialogando com o MST e o Ministério da Agricultura, voltado
para o agronegócio. O governo e o presidente se saíram bem na tarefa de
fazer opostos conviverem?
Sim. E isso é um talento
peculiar que o presidente Lula tem, de ser um negociador nato. Como uma
boa parte do trabalho do governo foi feita pela Casa Civil, podemos
dizer que Dilma Rousseff tem a capacidade de fazer esse trânsito e essa
negociação.
Mas como explicar as reações provocadas?
Duas
coisas são muito importantes com relação ao atual governo. A primeira é
que o governo Lula jamais será perdoado por ter enfrentado a questão da
desigualdade social. Lula enfrentou a partir da própria figura dele. O
fato de você ter um presidente operário, que tem o curso primário (Lula
tem o ensino médio completo), significou a ruína da ideologia burguesa.
Todos os critérios da ideologia burguesa para ocupar este posto
(Presidência da República), que é ser da elite financeira, ter formação
universitária, falar línguas estrangeiras, ter desempenho de gourmet...
Enfim, foi descomposta uma série de atrativos que compõem a figura que a
burguesia compôs para ocupar a Presidência. Ponto por ponto.
A
burguesia brasileira e a classe média protofascista nunca vão perdoar
isso ter acontecido. Imagine como eles se sentem. Houve (Nelson)
Mandela, Lula, (Barack) Obama, (Hugo) Chávez. É muita coisa para a
cabeça deles. É insuportável. É a sensação de fim de mundo.
Tudo
que fosse possível fazer para destruir esse governo foi feito. Por que
não caiu? Não caiu porque foi capaz de operar a negociação entre os
polos contrários. Isso é uma novidade no caso do Brasil porque,
normalmente, opera-se por exclusão. O que o governo fez foi operar por
entendimento. E a possibilidade de corrigir uma coisa pela outra.
Agora,
há milhares de problemas que o próximo governo vai ter de enfrentar.
Não podemos cobrar de nós mesmos que façamos em oito ou em 16 anos o que
não foi feito em 500. Mas quando se olha o que já foi feito, leva-se um
susto. A redução da desigualdade, a inclusão no campo dos direitos de
milhões de pessoas, o Luz para Todos, a casa (Minha Casa, Minha Vida), o
Bolsa-Família, a (geração de empregos com) carteira assinada... É uma
coisa nunca feita no Brasil.
A sra. faz uma avaliação muito positiva do governo. Por que essas medidas não ocorreram antes?
Alguém
tinha de vir das classes trabalhadoras para dizer o que precisa fazer
no Brasil. Os governos anteriores sequer levavam em conta que isso
existia. O máximo que existia era o incômodo de ver essa gente pela rua,
embaixo da ponte, fazendo greve, no ponto de ônibus, caindo pelas
tabelas na condução pública. Era uma coisa assim que incomodava -
(diziam:) "é meio feio, né? É antiestético". O máximo de reação que a
presença de classes populares causava era por serem antiestéticos. É a
primeira vez que essa classe foi levada a sério.
Eles vão
estrebuchar, vão gritar, vão xingar. Vão pintar a saracura, como diria
minha mãe. Mas é isso aí. Deixa pintar a saracura que nós ficamos em pé.
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