Foi “perambulando” pelas muitas morais (condições de
vida) ou perspectivas avaliadoras que já se tinha ouvido falar que Nietzsche
constatou duas formas distintas de avaliação, duas perspectivas avaliadoras,
dois tipos psicológicos, ambos com suas particularidades presentes em diversos
povos e classes de indivíduos no decorrer da história: a perspectiva avaliadora
dos nobres contraposta à perspectiva avaliadora dos ressentidos, ou seja, a “moral dos fortes” e a “moral dos fracos”. Vale ressaltar que
quando Nietzsche distingue esses dois tipos, nobres e ressentidos, ele se
refere precisamente à aristocracia guerreira dos tempos homéricos e sua casta
sacerdotal.
Aos olhos de Nietzsche a moral e, por conseguinte,
seus cultuados valores, até o momento nunca fora abordada como um problema,
posto que o valor dos valores reinantes permanecia inquestionável. E quando
abordada era ainda no âmbito de hipóteses anacrônicas que se perdiam no azul
das fábulas metafisicas.
Ao colocar em relevo o valor bom Nietzsche questiona se no mesmo não teria um sintoma
regressivo. Por esse motivo as condições e circunstâncias da sua origem são
problematizadas. A palavra “bom”, em suas várias designações nas mais
diversificadas línguas remete à mesma transformação conceitual. Nobre,
aristocrático em seu sentido social, é o conceito básico que irrompe o
desenvolvimento da palavra “bom”, isto é, como espiritualmente nobre,
espiritualmente bem nascido, espiritualmente privilegiado. Tal palavra está
ligada à superioridade no poder, como os poderosos, os senhores, os ricos, os
possuidores. Além disso, Nietzsche ainda ressalta o direito senhorial de dar
nomes. Visto que são definidores de hierarquias, os nobres efetuavam suas
avaliações em oposição a tudo que era baixo, vulgar e plebeu. Ou seja, o que
deveras interessava ao nobre era estabelecer o pathos da distância: o duradouro domínio de uma elevada estirpe
senhorial:
Desse
pathos da distância é que eles tomaram para si o
direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade!
Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de
tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e
definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo
grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade
pressupõe. (idem, p.19).
Pois bem! O que Nietzsche quer mostrar é justamente
que a mesma palavra ganha outro sentido quando é cultivado pela casta
sacerdotal. Ou seja, o valor bom
ganha uma nova roupagem. Daí, uma mesma palavra é analisada em dois momentos
por nosso filósofo: um primeiro momento em que ela é criada e um segundo em que
a mesma é descontextualizada.
O tipo nobre é aquele ciente de sua posição. De
forma espontânea determina valores e empresta honra às coisas. O valor nobre
remete especificamente a sua vitalidade física. Devido a sua aptidão a caça,
para a guerra, jogos e aventuras, o nobre cria o valor bom atribuindo-o a si mesmo. Dito de outro modo, a perspectiva
avaliadora do nobre nasce de uma acepção triunfante na afirmação de si. Em sua autocelebração da vida anseia apenas
por práticas sublimes “porque seu coração
transborda”. Por isso inflama seu
discurso de auto afirmação: “nós os
nobres, nós os bons, nós os felizes”. Em seguida, como uma “pálida imagem contrasta” uma simples criação
derivada, ou uma cor complementar, o nobre cria o valor ruim para designar os desprovidos de poder e vitalidade física,
impotentes e incapacitados para a guerra, ou seja, os escravos.
O
juízo de valor cavalheiresco aristocrático tem como pressuposto uma
constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo
transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra,
aventura, caça, dança, torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta,
livre, contente. (ibidem, p. 25).
Por sua vez, a moral do escravo, sua perspectiva
avaliadora, a forma como concebe o mundo, é caracterizada pela sua
suscetibilidade mórbida, cuja postura contrária à avaliação dos nobres é a
forma de expressão mais sincera da decadência. Mas, por quê? Ora, precisamente
por nascer de um ressentido não, sua
ação se exterioriza precisamente de um “doentio”
movimento de reação. O modo de valoração dos fracos tem como referência o modo
de valoração dos nobres.
Em uma
desesperada tentativa de se sobressair do domínio dos nobres, o fraco articula
um discurso unicamente transcendental instaurando valores supremos, na
tentativa de mascarar sua incapacidade de instinto de vingança:
E
precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, o
“mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora uma imagem
equivalente, um bom – ele mesmo! (idem, p. 31).
Tendo em mente desqualificar o valor Bom da moral nobre, o escravo ressentido
cria o valor mau estrategicamente
acusando o nobre e reinterpretando pelo olhar venenoso do ressentimento o valor
bom da moral dos nobres. Com isso, ao
conceber seu adversário como mau,
mentalmente ele cria um valor bom em
contrapartida de si mesmo. Seu desejo de vingança se agrava mediante sua
impotência em vingar-se. Seu discurso que emana de um profundo sentimento de
vingança se apresenta da seguinte forma:
Sejamos
outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja,
que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a deus a vingança,
que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da
vida, como nós, os pacientes, humildes, justos (idem, p.37).
Nesse trecho apercebemos que a moral dos escravos
traça uma poderosa estratégia quando transforma sua miséria em mérito, sua
fraqueza como se fosse opcional, sua impotência voluntária, dando início assim
à inversão dos valores morais, que caracteriza a vingança espiritual
fundamentada no ódio mais profundo e sublime da casta sacerdotal. Um tipo de
vingança caracterizada por subverter uma preeminência política em uma
preeminência espiritual. A esse respeito, bem declara Nietzsche:
Julgar
e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se
vingarem daqueles que são menos, e também uma espécie de compensação por terem
sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem
espírito e se tornarem sutis- a malícia espiritualizada. (Nietzsche,
2005, p.112).
Até o momento podemos nos situar no ato de criar
como critério para diferenciar esses dois tipos: o homem nobre, abundante de
forças, aquele que cria e que dá valor. E o fraco, que não cria, seu ato é de reação:
seu olhar não enxerga a si; seu ato é de acusação: ele reage.
Pois bem! Por esse ângulo podemos distinguir
visivelmente forças primárias ativas e forças secundárias reativas. E por se
tratar da filosofia de Nietzsche uma Filosofia de forças, Gilles Deleuze
afirma:
O
sentido consiste precisamente numa relação de forças, segundo a qual algumas
agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado. Qualquer que seja a
complexidade de um fenômeno, distinguimos bem forças ativas, primárias, de
conquista e subjugação, e forças reativas, secundárias, de adaptação e de regulação.
(1981, p.21)
Em Genealogia
da Moral (no conjunto da obra) Nietzsche pretendeu mostrar essa hierarquia
de forças que se contrapõem, esboçando no (decorrer do livro) as três etapas do
adoecimento do homem, problematizando assim a perspectiva avaliadora dos
ressentidos. Na primeira dissertação discorre sobre o ressentimento, na segunda
a má consciência, e na terceira dissertação analisa o ideal ascético. O ponto
central dessas três etapas consiste em mostrar o determinado momento em que a
perspectiva do ressentido sobrepuja a perspectiva do nobre. Frente a um leque
muito amplo de possíveis crenças que, contribuíram, segundo Nietzsche, para a
manifestação do aviltado e bem sucedido domínio do ressentido, é fundamental
considerarmos que em termos de hierarquia a força reativa é uma força submissa,
porém é justamente ela que prevalece se sobressaindo da força ativa. Como tal fenômeno
é possível? Ora, nesse caso Nietzsche alega a formação da consciência moral
fundamentada na interiorização do homem, o que implica em um voltar-se contra
si mesmo. A partir desse contexto, com toda irreverência que lhe é particular,
Nietzsche pensa de forma contrária à seleção natural proposta por Darwin, ao
denunciar um momento histórico em que subsistem e levam vantagem os fracos.
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Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura > |