segunda-feira, 23 de julho de 2012

NIETZSCHE: UMA COMPREENSÃO DA CULTURA DO OCIDENTE COMO SINTOMA DE DECADÊNCIA MORAL



Foi “perambulando” pelas muitas morais (condições de vida) ou perspectivas avaliadoras que já se tinha ouvido falar que Nietzsche constatou duas formas distintas de avaliação, duas perspectivas avaliadoras, dois tipos psicológicos, ambos com suas particularidades presentes em diversos povos e classes de indivíduos no decorrer da história: a perspectiva avaliadora dos nobres contraposta à perspectiva avaliadora dos ressentidos, ou seja, a “moral dos fortes” e a “moral dos fracos”. Vale ressaltar que quando Nietzsche distingue esses dois tipos, nobres e ressentidos, ele se refere precisamente à aristocracia guerreira dos tempos homéricos e sua casta sacerdotal.
Aos olhos de Nietzsche a moral e, por conseguinte, seus cultuados valores, até o momento nunca fora abordada como um problema, posto que o valor dos valores reinantes permanecia inquestionável. E quando abordada era ainda no âmbito de hipóteses anacrônicas que se perdiam no azul das fábulas metafisicas.
Ao colocar em relevo o valor bom Nietzsche questiona se no mesmo não teria um sintoma regressivo. Por esse motivo as condições e circunstâncias da sua origem são problematizadas. A palavra “bom”, em suas várias designações nas mais diversificadas línguas remete à mesma transformação conceitual. Nobre, aristocrático em seu sentido social, é o conceito básico que irrompe o desenvolvimento da palavra “bom”, isto é, como espiritualmente nobre, espiritualmente bem nascido, espiritualmente privilegiado. Tal palavra está ligada à superioridade no poder, como os poderosos, os senhores, os ricos, os possuidores. Além disso, Nietzsche ainda ressalta o direito senhorial de dar nomes. Visto que são definidores de hierarquias, os nobres efetuavam suas avaliações em oposição a tudo que era baixo, vulgar e plebeu. Ou seja, o que deveras interessava ao nobre era estabelecer o pathos da distância: o duradouro domínio de uma elevada estirpe senhorial:
Desse pathos da distância é que eles tomaram para si o direito de criar valores, cunhar nomes para os valores: que lhes importava a utilidade! Esse ponto de vista da utilidade é o mais estranho e inadequado, em vista de tal ardente manancial de juízos de valor supremos, estabelecedores e definidores de hierarquias: aí o sentimento alcançou bem o oposto daquele baixo grau de calor que toda prudência calculadora, todo cálculo de utilidade pressupõe. (idem, p.19).
Pois bem! O que Nietzsche quer mostrar é justamente que a mesma palavra ganha outro sentido quando é cultivado pela casta sacerdotal. Ou seja, o valor bom ganha uma nova roupagem. Daí, uma mesma palavra é analisada em dois momentos por nosso filósofo: um primeiro momento em que ela é criada e um segundo em que a mesma é descontextualizada.
O tipo nobre é aquele ciente de sua posição. De forma espontânea determina valores e empresta honra às coisas. O valor nobre remete especificamente a sua vitalidade física. Devido a sua aptidão a caça, para a guerra, jogos e aventuras, o nobre cria o valor bom atribuindo-o a si mesmo. Dito de outro modo, a perspectiva avaliadora do nobre nasce de uma acepção triunfante na afirmação de si.  Em sua autocelebração da vida anseia apenas por práticas sublimes “porque seu coração transborda”.  Por isso inflama seu discurso de auto afirmação: “nós os nobres, nós os bons, nós os felizes”. Em seguida, como uma “pálida imagem contrasta” uma simples criação derivada, ou uma cor complementar, o nobre cria o valor ruim para designar os desprovidos de poder e vitalidade física, impotentes e incapacitados para a guerra, ou seja, os escravos.
O juízo de valor cavalheiresco aristocrático tem como pressuposto uma constituição física poderosa, uma saúde florescente, rica, até mesmo transbordante, juntamente com aquilo que serve à sua conservação: guerra, aventura, caça, dança, torneios e tudo o que envolve uma atividade robusta, livre, contente.  (ibidem, p. 25).
Por sua vez, a moral do escravo, sua perspectiva avaliadora, a forma como concebe o mundo, é caracterizada pela sua suscetibilidade mórbida, cuja postura contrária à avaliação dos nobres é a forma de expressão mais sincera da decadência. Mas, por quê? Ora, precisamente por nascer de um ressentido não, sua ação se exterioriza precisamente de um “doentio” movimento de reação. O modo de valoração dos fracos tem como referência o modo de valoração dos nobres.
 Em uma desesperada tentativa de se sobressair do domínio dos nobres, o fraco articula um discurso unicamente transcendental instaurando valores supremos, na tentativa de mascarar sua incapacidade de instinto de vingança:
E precisamente nisso está seu feito, sua criação: ele concebeu o “inimigo mau”, o “mau”, e isto como conceito básico, a partir do qual também elabora uma imagem equivalente, um bom – ele mesmo! (idem, p. 31).
Tendo em mente desqualificar o valor Bom da moral nobre, o escravo ressentido cria o valor mau estrategicamente acusando o nobre e reinterpretando pelo olhar venenoso do ressentimento o valor bom da moral dos nobres. Com isso, ao conceber seu adversário como mau, mentalmente ele cria um valor bom em contrapartida de si mesmo. Seu desejo de vingança se agrava mediante sua impotência em vingar-se. Seu discurso que emana de um profundo sentimento de vingança se apresenta da seguinte forma:
Sejamos outra coisa que não os maus, sejamos bons! E bom é todo aquele que não ultraja, que a ninguém fere, que não ataca, que não acerta contas, que remete a deus a vingança, que se mantém na sombra como nós, que foge de toda maldade e exige pouco da vida, como nós, os pacientes, humildes, justos (idem, p.37).
Nesse trecho apercebemos que a moral dos escravos traça uma poderosa estratégia quando transforma sua miséria em mérito, sua fraqueza como se fosse opcional, sua impotência voluntária, dando início assim à inversão dos valores morais, que caracteriza a vingança espiritual fundamentada no ódio mais profundo e sublime da casta sacerdotal. Um tipo de vingança caracterizada por subverter uma preeminência política em uma preeminência espiritual. A esse respeito, bem declara Nietzsche:
Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que são menos, e também uma espécie de compensação por terem sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem espírito e se tornarem sutis- a malícia espiritualizada. (Nietzsche, 2005, p.112).
Até o momento podemos nos situar no ato de criar como critério para diferenciar esses dois tipos: o homem nobre, abundante de forças, aquele que cria e que dá valor. E o fraco, que não cria, seu ato é de reação: seu olhar não enxerga a si; seu ato é de acusação: ele reage.
Pois bem! Por esse ângulo podemos distinguir visivelmente forças primárias ativas e forças secundárias reativas. E por se tratar da filosofia de Nietzsche uma Filosofia de forças, Gilles Deleuze afirma:
O sentido consiste precisamente numa relação de forças, segundo a qual algumas agem e outras reagem num conjunto complexo e hierarquizado. Qualquer que seja a complexidade de um fenômeno, distinguimos bem forças ativas, primárias, de conquista e subjugação, e forças reativas, secundárias, de adaptação e de regulação.  (1981, p.21)
Em Genealogia da Moral (no conjunto da obra) Nietzsche pretendeu mostrar essa hierarquia de forças que se contrapõem, esboçando no (decorrer do livro) as três etapas do adoecimento do homem, problematizando assim a perspectiva avaliadora dos ressentidos. Na primeira dissertação discorre sobre o ressentimento, na segunda a má consciência, e na terceira dissertação analisa o ideal ascético. O ponto central dessas três etapas consiste em mostrar o determinado momento em que a perspectiva do ressentido sobrepuja a perspectiva do nobre. Frente a um leque muito amplo de possíveis crenças que, contribuíram, segundo Nietzsche, para a manifestação do aviltado e bem sucedido domínio do ressentido, é fundamental considerarmos que em termos de hierarquia a força reativa é uma força submissa, porém é justamente ela que prevalece se sobressaindo da força ativa. Como tal fenômeno é possível? Ora, nesse caso Nietzsche alega a formação da consciência moral fundamentada na interiorização do homem, o que implica em um voltar-se contra si mesmo. A partir desse contexto, com toda irreverência que lhe é particular, Nietzsche pensa de forma contrária à seleção natural proposta por Darwin, ao denunciar um momento histórico em que subsistem e levam vantagem os fracos. 

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Sobre o Autor:
Claudio Castoriaids Claudio Castoriadis é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura >

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