1.2. Manipulação: Essência antropológica da tradição
É assim
trazida à luz a essência antropológica da tradição, uma forma de manipulação
que está por trás de dogmas. Visto que ideias que afrontavam a tradição eram
acolhidas geralmente de forma hostil, uma grande parte da humanidade ainda vive
à sombra dessa manipulação. E Nietzsche alerta para a possibilidade de que ao
longo de nossa existência é a tradição que decide por nós. Sob o império da
moralidade dos costumes as ideias novas e divergentes são condenadas. Assim,
toda ação individual é malquista quando compreendida segundo o olhar do
moralista, visto que o nivelamento massivo de opiniões é assegurado pela
covardia, má-fé e preguiça. E mais: chegamos desse modo ao ataque à moral
reduzida a mero tradicionalismo, haja vista a moralidade não passar de
obediência incondicional ao costume. Não importa de qual tipo, o costume foi
sempre um modo tradicional de agir e julgar.
Nesse contexto, como compreendemos a tradição aqui
problematizada? Com justeza, podemos compreender esta como sendo um tipo de autoridade
superior à qual obedecemos cegamente, não porque nos ordena algo útil, mas
simplesmente pelo fato de que ordena. Ora, onde não existe tradição não existe
decência. Ou dito de outra forma: se conseguimos manter fidelidade pela
tradição, de maneira alguma seremos pessoas decentes, pessoas de caráter moral
íntegro. Por isso, podemos concluir que a moral delimita a ação do sujeito, visto
que posturas contrárias ao imperativo da tradição não são bem acolhidas em uma
comunidade.
Por esse motivo quanto menos a vida é determinada
pela tradição tanto mais se restringe a área da moralidade. Não obstante, o que
interessa a Nietzsche ao denunciar o encanto e servidão voluntária é justamente
seu problema psicológico: o sentimento de medo.
Em
que se distingue este sentido da tradição de um sentido geral de temor? É temor
de uma inteligência superior que ordena, o temor de uma potência
incompreensível e indefinida, de algo que é mais pessoal – há superstição neste
temor. (idem, p. 19)
Quando em 1881 Nietzsche publica Aurora: Reflexões sobre Preconceitos Morais
ele dá continuidade em sua análise à estrutura da moral que teve início já nos
638 aforismos do primeiro volume de Humano
Demasiado Humano (1878). Ampliando
a discussão sobre a cultura e introduzindo considerações sobre a vida social
Nietzsche trata especificamente de um problema psicológico: o sentimento de
medo. Seu argumento problematiza a moral sustentada a mero tradicionalismo legitimada
pelo sentimento de medo que vigora perante uma autoridade ou superstição. Nesse
contexto prestamos obediência moral, como uma autoridade incontestável, um tipo
de moral atrelada à tradição, nos hábitos e modos de agir costumeiros. Nesses
termos a costumeira crítica da cultura através da vida social conduz ao
problema da moral, visto também como o problema do medo, pois tal sentimento é
guia na participação do sentir dos outros. É por medo que somos domesticados
pela tradição, escravizados pelo hábito e debilitados pela moral. Onde existe
uma comunidade prevalece uma moralidade dos costumes e a moral inflamada de
preconceitos será sempre uma moradia dos fracos. A esse respeito escreve
Eduardo Rezende Melo:
A verdadeira cara da moral mostra-se, então,
como uma reação ao perigo e, portanto uma busca de conservação, construindo, a partir
dessa reação, todo um modo de conceber o homem, o mundo e a vida e, nessa mesma
resposta ao perigo, nessa reação moral, encontraram, para Nietzsche, o germe da
filosofia. (2004,
p. 123)
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