Em Viver sem tempos mortos,
Fernanda Montenegro dá voz aos pensamentos de Simone de Beauvoir (1908-1986),
escritora e pensadora francesa que foi ícone da liberdade feminina. A encenação
– como Fernanda gosta de chamar, por ser menos pretensioso do que uma peça –
faz parte do projeto Caminhos da Liberdade, que inclui palestras e exibição de
documentário sobre a escritora. Ao Mulher 7×7, a atriz explica por que voltou à
obra de Simone de Beauvoir e diz que Irmã Dulce é a brasileira que lembra o
legado da libertária francesa.
Como a senhora define esse novo projeto sobre Simone de
Beauvoir?
Fernanda Montenegro - Ele não é
nem uma peça. É uma encenação. Eu diria que é quase o porta-voz de uma escrita,
de um pensamento, da vivência de uma mulher que tem uma obra inesgotável.
A senhora leu Simone de Beauvoir na juventude, durante a
ascensão do movimento feminista. Como foi voltar a ter contato com sua obra?
Fernanda - Foi uma espécie de
volta à extrema mocidade. Nessa releitura, vi que ela é fantástica. Um ser que
se usou como instrumento de sua teoria. Fez de seu sentimento e de sua busca
pela liberdade o próprio campo experimental. E isso custa contestação e
rejeição que, de certa forma, duram até hoje. Se o mundo ousasse tudo o que ela
ousou, ela não sofreria tanto preconceito, especialmente na terra dela, a
França. É uma mulher muito interessante e forte em suas convicções.
Naquele início de 50, quando a li
pela primeira vez, foi uma descoberta ter uma visão racional como a dela do que
era ser mulher. A história sempre teve mulheres que fizeram sua vida na
liberdade. Mas o que ela fez foi sistematizar a visão do que é o ser feminino.
E foi interessante ver que nós podemos ser o que nós somos. Temos o direito de
buscar o que queremos. Talvez um pouco antes dessa época a mulher, para cortar
o cabelo, precisava da autorização do homem. Não por causa de fetiches
eróticos, mas porque precisava da permissão de um senhor. Depois da guerra, nos
anos 50, isso já tinha diminuído, mas acho que existe até hoje, mesmo que envergonhado.
Como a senhora vê a evolução da
condição da mulher pelas últimas décadas?
Fernanda - Não sou uma
especialista em feminismo, não sou antropóloga ou socióloga. Mas as coisas
avançaram muito. O homem hoje está assustado. Por “n” razões que a gente
ficaria aqui um dia inteiro jogando na mesa, mas basicamente porque as mulheres
vieram também para a vida fora do lar. Vieram para o convívio “do perigo”.
Saíram da gaiola, do domínio absoluto do espaço doméstico.
A senhora já sofreu com o machismo?
Fernanda - Vou lhe dizer uma
coisa: a nossa profissão, o teatro, é libertária. Hoje, talvez, as pessoas
confundam teatro com televisão e, pensam que, você indo para a televisão, você
é um artista, um ator. Mas, nos velhos tempos, era uma audácia vir para esse
campo. O teatro sempre teve isso. Se ao lado de um ator de enorme talento tiver
uma atriz de enorme talento, eles são iguais. O teatro sempre foi um campo
muito liberto. Não havia isso de se submeter, da relação de dono e domado.
Por que Simone de Beauvoir?
Fernanda - Porque calhou. Foi o
acaso. Um dos conceitos do existencialismo é que a última palavra é sempre do
acaso. Sérgio Britto, meu querido amigo, propôs fazermos Simone e Sartre. Por
“n” caminhos, ele seguiu com seu espetáculo Beckett, que é um extraordinário
sucesso, e fiquei com a bagagem de Simone, com quem já estava envolvida há um
ano. E, com a produtora Carmen Mello, fizemos esse projeto cultural e
educacional confiantes, embora muitos achem um absurdo levar Simone de Beauvoir
pela periferia. Tem gente que acha que algo mais do que o elementar não vai ter
ressonância, credibilidade, interesse. Mas nós fomos bem recebidos em seis
cidades da Baixada Fluminense e da Serra fazendo apresentações de graça ou com
um preço muito acessível, de R$ 2 e R$ 4.
A senhora pode explicar o significado do título da
encenação, Viver sem tempos mortos?
Fernanda - É um dos slogans da
revolução de 1968, da revolução dos jovens. E Simone de Beauvoir, em certo
momento, disse que viveu dessa maneira. Achamos que era um título interessante
para a encenação dirigida pelo Felipe Hirsch. Era a compilação de uma
compilação. Ele leu, achou que poderia dar uma coisa viva e radicalizou. Fez
uma encenação muito clean, minimalista. É mais um porta-voz do que um
dó-de-peito. Não se pretende imitar trejeitos ou exibir. É muito simples. Nunca
fiz nada tão minimalista.
Como vocês chegaram a esse formato?
Fernanda - Esperei que ele
chegasse. Acredito muito na palavra, na força do pensamento explicitado. Não
acho que teatro deva ser só isso. Mas há uma escrita que pode não ser de
dramaturgia mas pode ser adaptada e elaborada para o teatro e ter sua força.
Quanto menos a gente mexer e se mexer e se exibir, melhor. Porque o pensamento
já é tão forte, o sentimento já é tão forte… Eu esperei que ele, diretor e
encenador, chegasse a isso. Cada vez que ele limpava o cenário, eu ficava mais
feliz. Dentro da minha alma, dizia: “É isso mesmo”. Quando finalmente ele tirou
tudo, achei: “Ah, que bom, que maravilha!”
O que devemos aprender com Simone de Beauvoir hoje?
Fernanda – O sentido da
liberdade. E ser livre é difícil. Ela mesma diz: “ser livre é assustador”. O
que é, no fundo, a liberdade absoluta? Em que isso se mistura com necessidade
neurótica com isolamento?
É possível comparar sua relação com Fernando Torres com a
relação de Simone de Beauvoir com Jean-Paul Sartre?
Fernanda - São vidas
completamente diferentes. O que talvez tenhamos em comum é aceitar a liberdade
e os caminhos da liberdade, que podem ser muitos também. Não existe só o
caminho dela ou o do Sartre.
A senhora conversou sobre
feminismo ou sobre Simone com sua filha (a atriz Fernanda Torres)?
Fernanda - Não, isso nunca foi
uma questão. Lá em casa não se viveu e nem se vive esse problema. Somos
mulheres peitudas desde avós, de bisavós. Os homens têm que ter coragem para se
meter com a gente, somos de uma boa safra.
Como a senhora gostaria que as pessoas vissem seu novo
trabalho?
Fernanda - Como uma ponte de
sensibilização. Ele não tem nenhum gancho para pegar a plateia. Ela que tem que
entrar. A encenação não tem nenhum golpe cênico, nenhum ruído que o acorde na
cadeira. Foi onde pudemos chegar com esse material tão inquietante sem esgotar
o assunto. É o arranhar de uma temática imensa.
E qual foi a reação das pessoas diante de Simone?
Fernanda - As mais variadas,
inclusive confissões. Ouvi, por exemplo, de uma mulher: “Tenho três filhos de
pais diferentes e não sinto falta deles. Crio todos sozinha. Portanto, tenho
uma vida livre.” Um senhor disse: “Mas se ela tinha orgasmo completo com esse
amante, como largou esse homem para ficar com outro que não lhe dava o famoso
orgasmo completo”? Outros dizem assim: “Ela fala tanto em liberdade mas era
submissa a ele! Era entregue a ele, não conseguia se livrar dele”. Vem o discurso
da vida, não o acadêmico ou o das discussões filosóficas. Queríamos dar algo
mais do que uma coisa eletrônica do que um rádio ou uma televisão: queríamos a
comunicação humana direta. E aproveitamos para “dessacralizar” essa coisa do
artista. Parece que você não tem cárie no dente, caspa, dor de barriga, calo,
isso para não dizer coisas mais escatológicas.
Existe uma brasileira comparável a Simone?
Fernanda - Vou dizer um absurdo.
Mas, é verdade: irmã Dulce. A baianinha de família rica que resolve ir para o
convento contra tudo e contra todos e faz o trabalho social que ela fez, de
porta em porta. É um exemplo extraordinário. Não porque entrou numa igreja,
numa religião, mas pela liberdade de ir contra tudo e contra todos e fazer uma
obra social enorme. Porque a liberdade pode ser ter muitos parceiros ou ter
parceiro nenhum. O que significa a liberdade? Uma vez, vi uma entrevista quando
estava em Paris. Era um programa sobre liberdade. Estavam entrevistando
diversas pessoas. O jornalista foi a um convento das carmelitas e entrevistou
uma freira que estava atrás de uma porta. Ele não via a mulher e nem ela o via.
E ela falando de liberdade. E ele disse: “Mas a senhora está falando de
liberdade atrás de uma porta, de onde a senhora não tem nem permissão de me ver!
Como a senhora explica isso?”. Ela respondeu: “Liberdade, para mim, é um ser
humano estar onde ele deseja estar.”
Por: Letícia Sorg, repórter especial de ÉPOCA em São Paulo.