quinta-feira, 17 de março de 2011

Na altura entendido em sombras: o narcisismo de Nietzsche segundo o Filósofo Peter Sloterdijk.

                                                                                   
                                                                                                         Por Claudio Castoriadis

Quando analisamos as várias leituras empreendidas pelos mais diversos intelectuais e historiadores da filosofia do autor de Zaratustra, devemos considerar que, de forma espontânea, vertentes interpretativas do seu pensamento surgem cada qual com sua particularidade e estrutura argumentativa. Com rigor algumas são mantidas, por ventura outras postas de lado, e, muitas outras concepções por obrigação são retomadas para serem revistas. Porém, uma das questões que ainda implica em uma complexa problemática, considerada, central pela grande maioria dos comentadores, é o tom do discurso de Nietzsche. Torna-se até mesmo embaraçoso para muitos intelectuais falar de um autor que, antes de qualquer coisa se considerava uma dinamite ao invés de um homem; e, nesse caso poderíamos até mesmo entrar em um consenso: Que assim como poucos, Nietzsche tinha o incrível talento em deixar seus leitores, muitas vezes, em posições no mínimo desconfortáveis; afinal de contas não é tão comum encontrarmos nos meios acadêmicos um filósofo que reclama para si uma sabedoria densa e escura prestes a parir um relâmpago, uma peculiar sabedoria que rejeita sua luz para os homens de seu tempo preferindo antes lhes cegar os olhos.

Sua postura um tanto sarcástica fruto de uma forma espontânea de filosofar pode ser vislumbrada num simples correr de olhos pelos títulos e subtítulos dos seus principais livros: Humano demasiado humano- um livro para espíritos livres, Aurora- pensamentos sobre preconceitos morais, Assim falou Zaratustra- um livro para todos e para ninguém, Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo, Ecce Homo ou Como Torna-se O Que Se É, O Anticristo- Ensaio de Crítica do Cristianismo. Nessa mesma esteira, juízos irreverentes sobre seus antecessores, filósofos e intelectuais, deixam transparecer uma personalidade ousada e surpreendente. René Descartes por exemplo, consagrado como o pai da metafísica moderna é taxado como artificial, Imannuel Kant, grande vulto da filosofia alemã é denunciado pela sua hipocrisia, e Hegel, o maior representante do idealismo filosófico do século XIX é rebaixado á um mero funcionário do estado. Que sentido dar a essas afirmações? Humor? Dramaticidade?

Em cada publicação críticas organizadas com frieza e precisão, sendo cada juízo uma nova dinamite na sociedade de seu tempo; em cada página, precisos aforismos que incitava seu leitor a pensar perigosamente. Sem entranhas e muito menos, sem piedade. Indubitavelmente suas provocações revelavam o foco vulcânico do universo mental de Nietzsche. Com isso, quando entramos em contato com suas obras, de certo modo, somos arrebatados por desconcertantes “alfinetadas” que, no conjunto, exprimem ironicamente o que há de mais sublime acerca da reflexão humana, tudo expresso em livros numa linguagem demasiada cativante digna de um mestre narcisista de primeira categoria. Um manipulador de palavras que paralisa nosso sangue dando tiros certeiros na escuridão de nossa alma. Que enxergando o mundo e a cultura de seu tempo com profunda suspeita falou coisas sérias rindo em um tom irreverente de brincadeira e astucia (Scherz Und List). Sua generosidade intelectual para com aqueles que arriscam respirar a paixão; as alturas das provocações dos seus escritos pode ser caracterizada em dois movimentos: o primeiro movimento se exterioriza pelo fascínio seguido pela paixão súbita contraída das críticas que, na verdade, nada mais são que lamentações de um nobre mestre, que denúncia o estado deplorável em que se encontra a vida e a decadente condição humana tão trabalhada pelo humanismo. Com efeito, foram muitos os intelectuais que reconheceram o encanto que habitava na perfeição de sua linguagem e jogo de imagens que, influenciava artistas de grande envergadura com suas metáforas, parábolas e aforismos.

Um segundo movimento, esse o mais visível, é a postura cautelosa que aderimos quando adentramos no âmago do seu pensamento. Isto é, um movimento caracterizado pela aversão que faz o leitor recuar por insegurança quando se constata um auto-louvor de um pensador eufórico, transbordando uma singular linguagem de júbilo, uma auto- afirmação, explorada em uma esfera laudatória, onde temos um pensador que não faz economia de discursos arrogantes, um tom aderido que lhe acompanhará no decorrer de toda sua produção intelectual. Enfim, o inegável movimento de atração mediante a particularidade do seu estilo pode certamente se converter em um movimento de repúdio ou insegurança quando constatamos um pensador no auge de seu auto-louvor desafiando o leitor a decifrar seu pensamento.

Proposições insuportáveis, megalomania, poesia, loucura, auto-louvor, auto-exposição, auto-elogio excessivo, auto-objetivação, explosões da consciência, extravasamento narcisistico. Ora, todas essas definições são comumente empregadas para designar a capacidade extraordinária de Nietzsche em falar de si mesmo. Mas afinal de contas em qual desses termos seria mais adequado enquadrar a arrogância filosófica, no sentido excepcional da palavra o pai de Zaratustra? Em que medida sua postura dificilmente perdoável seria relevante para seus leitores? Para muitos, seu discurso visivelmente narcisista soa como canção na qual um poeta zomba de todos os poetas; para outros, o pano de fundo de tal retórica seria o delírio que se aproximava. Pois bem, é certo que nesse contexto muitos foram determinados em delinear as ideias principiadas á luz do enlouquecimento; é certo também que existiram aqueles que optaram pensar as possibilidades de analisar os textos escritos sob o efeito de drogas; e é certo ainda que não foram os poucos que se dispuseram em desacreditar obras cujo autor oscilava entre estados de euforia e depressão.

A luz dessas reflexões seria interessante, nesse momento, adotamos um outro ponto de vista; buscarmos argumentos enxergando além daqueles que desacreditam seus manuscritos, deixarmos de lado por enquanto teses que abraçavam eventuais incoerências do autor de Zaratustra. Ora, como tal feito é possível? Como desviar o olhar da megalomania de Nietzsche sem se deixar intimidar ou ser tomado por um profundo sentimento de repúdio? Enfim, como demora-se nestas proposições insuportáveis? Uma vez que até mesmo entre os amantes de Nietzsche há o costume de desviar o olhar evitando citar tais passagens.

Peter Sloterdijk: Filósofo e professor de Estética 
Uma via de resposta plausível a questão do seu discurso é nos ofertada pelo próprio Nietzsche quando sugere que consideremos seus excessos eufóricos como ponto mais alto do cinismo: “acabei de transformar-me a mim mesmo em narrativa, servindo-me de um cinismo que passará a fazer parte da história do mundo”. Encontramos nessa confiança, de um possível grande acontecimento atrelado ao seu nome, um atraente desafio em tentar com seriedade, analisar o que para muitos é motivo de chacota no discurso isento de reservas de Nietzsche. Nesse caso, foi com prudência que Sloterdijk se posicionou. Em seu ensaio o quinto evangelho de Nietzsche propõe-se a explorar as provocações do filósofo ampliando o alcance de sua reflexão, partindo do princípio da existência de toda uma estratégia por traz do auto-louvor nietzschiano. 

Para comemorar o centenário do nascimento de Friedrich Nietzsche, o filósofo Peter Sloterdijk em uma conferência proferida em Weimar, no dia 25 de Agosto do ano de 2000, mantém um diálogo acerca do discurso nietzschiano. Nesse encontro a proposta de demora-se nestas proposições narcisistas é sustentada por serem estas, um modo de falar que resume e perpassa grande parte dos séculos XIX e XX, atravessando todo o século XXI. Para Sloterdijk, pensar Nietzsche como aquele que incorporou a onda individualista que contornou a sociedade civil, permite estabelecemos o mesmo como único teórico que, procurando as bases da oração do sentimento nobre de um povo autoconsciente consegui-o captar a linguagem como um médium que permite a falantes expressar as razões de seu estar por cima. Sendo assim, a catástrofe atribuída a seu nome se deve pela sua intuição de que a matéria que seria tomada para formar o futuro teria que ser procurada no desejo do individuo em se destacar dos demais. Desse modo, segundo Sloterdijk, as linguagens são instrumentos que tem relação com tal narcisismo, pois elas permitem o auto-louvor do individuo. Seja na sua forma primaria como amor próprio no século XVII, em egoísmo santo no século XIX, de narcisismo no século XX e de autodesign no século XXI, a linguagem antes de se tornar técnica, serve para o auto-engrandecimento dos falantes. E, se tratando de Nietzsche, tal tese encontra fundamento e campo de comprovação. Dessa forma, todo aquele que utiliza uma linguagem e um discurso de acordo a sua função pré-narcisista, exterioriza sempre uma auto-afirmação.

Em 1884 Nietzsche escreve a Malvida Von Meysenbug: tenho coisas em minha alma que são centenas de vezes mais pesadas do que a Bêtise humaine (estupidez humana). É possível que eu venha a ser funesto para todos os homens vindouros, uma fatalidade. É bem possível que, no futuro, me torne mudo, por puro amor aos homens. 

Nessa passagem, para nós bastante ilustrativa a que conforme problematizamos, encontramos dois pontos importantes: primeiro que Nietzsche era convicto do tom de sua críticas ao adotar o que ele denominou de “cinismo” e um segundo que ele presumia as desastrosas consequências se fosse mal compreendido. Porém, em nenhum momento se deixou abater em seu projeto. Muito pelo contrário, sua autodeterminação tomou corpo em sua terrível responsabilidade. Encontramos desse modo em sua fala um tipo de egoísmo virtuoso contrario a moral de rebanho subvertendo radicalmente princípios politicamente corretos que serviam de abrigo para esperanças redentoras num céu inflamado pelo imperativo categórico da moralidade de sua época. Por isso ele pôde afirmar: [...] as grandes coisas permanecem reservadas para os grandes, os abismos para os profundos, as sutilezas e calafrios para os refinados e, em geral e resumo, tudo aquilo que é raro para os raros. Em sua quarta consideração extemporânea ao traçar o perfil de Wagner, Nietzsche apontava sua música como renovação cultural não poupando elogios enaltecedores ao estimado amigo. Contudo, logo depois ao se retratar em Ecce Homo, Nietzsche ressalta ser dele o púlpito do qual tanto falara quando prestava homenagem ao velho mestre autor de Tristão e Isolda. Nesse ponto não fica difícil adivinhar a quem ele se referia quando afirmara: “Um acontecimento, para ser grande, deve reunir duas condições: a grandeza de seus autores, a grandeza daqueles que nele estão envolvido”. Devemos, pois, a partir desse fato, considerando a complexidade desse problema, buscar uma reflexão precisa acerca desse cinismo, partindo do principio da condição proposta por Nietzsche, da grandeza do autor intimamente relacionada á grandeza daquele envolvido. Compreendendo dessa forma, o conceito de grande acontecimento no sentido de “catástrofe consentida”.

Para tanto, antes de mais nada, precisamos levar em conta que Nietzsche tinha plena consciência do peso do seu cinismo. Por esse motivo, segundo Sloterdijk, podemos atribuir a grandeza desse autor por professar o caminho que seguiria a linguagem da Europa. Mas, vale lembrar que a grandeza dos seus leitores nesse sentido só é possível quando estes conseguirem apreciar o espírito de um filósofo que lançou mão de diversos recursos para livrar seus leitores das amarras do ressentimento fruto do niilismo de sua época. “E quando se tem um presente a dar, deve-se ter cuidado para que os beneficiários saibam apreciar o espírito com que lhes é dado esse presente”.






Referências bibliográficas

Nietzsche. F. O Caso Wagner. São Paulo, Editora Escala. 2007
________, Ecce Homo, Como Alguém Se Torna O Que É. São Paulo, companhia das letras, 1995.
Sloterdijk, P. O quinto “evangelho” de Nietzsche. Rio de janeiro, Tempo brasileiro, 2004.

Sobre o Autor:
Claudio Castoriaids Claudio Castoriadis
é Professor e blogueiro. Formado em Filosofia pela UERN. Criador do [ Blog Claudio Castoriadis ] Tem se destacado como crítico literário.Seu interesse é passar o máximo de conhecimento acerca da cultura >
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