O Congresso Nacional dos
Jornalistas realizado em Ouro Preto (MG) recebeu um público de mais de 500
pessoas entre jornalistas e convidados. Na palestra inicial (27/08), A filósofa
Marilena Chauí, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) falou sobre o tema “Mídia e
Poder” e mostrou haver nos dias de hoje “um certo atrelamento da mídia ao poder
constituído” Leia e assista essa mulher que não se cala perante uma mídia
autoritária.
I. Democracia e autoritarismo
social
Estamos acostumados a aceitar a
definição liberal da democracia como regime da lei e da ordem para a garantia das
liberdades individuais. Visto que o pensamento e a prática liberais identificam
a liberdade com a ausência de obstáculos à competição, essa definição da
democracia significa, em primeiro lugar, que a liberdade se reduz à competição
econômica da chamada “livre iniciativa” e à competição política entre partidos
que disputam eleições; em segundo, que embora a democracia apareça justificada
como “valor” ou como “bem”, é encarada, de fato, pelo critério da eficácia,
medida no plano do poder executivo pela atividade de uma elite de técnicos
competentes aos quais cabe a direção do Estado. A democracia é, assim, reduzida
a um regime político eficaz, baseado na ideia de cidadania organizada em
partidos políticos, e se manifesta no processo eleitoral de escolha dos
representantes, na rotatividade dos governantes e nas soluções técnicas para os
problemas econômicos e sociais.
Parte I
Ora, há, na prática democrática e
nas ideias democráticas, uma profundidade e uma verdade muito maiores e
superiores ao que liberalismo percebe e deixa perceber.
Podemos, em traços breves e
gerais, caracterizar a democracia ultrapassando a simples ideia de um regime
político identificado à forma do governo, tomando-a como forma geral de uma
sociedade e, assim, considerá-la:
1. Forma sócio-política definida
pelo princípio da isonomia (igualdade dos cidadãos perante a lei) e da isegoria
(direito de todos para expor em público suas opiniões, vê-las discutidas,
aceitas ou recusadas em público), tendo como base a afirmação de que todos são
iguais porque livres, isto é, ninguém está sob o poder de um outro porque todos
obedecem às mesmas leis das quais todos são autores (autores diretamente, numa
democracia participativa; indiretamente, numa democracia representativa). Donde
o maior problema da democracia numa sociedade de classes ser o da manutenção de
seus princípios – igualdade e liberdade – sob os efeitos da desigualdade real;
2. Forma política na qual, ao
contrário de todas as outras, o conflito é considerado legítimo e necessário,
buscando mediações institucionais para que possa exprimir-se. A democracia não
é o regime do consenso, mas do trabalho dos e sobre os conflitos. Donde uma
outra dificuldade democrática nas sociedades de classes: como operar com os
conflitos quando estes possuem a forma da contradição e não a da mera oposição?
3. Forma sócio-política que busca
enfrentar as dificuldades acima apontadas conciliando o princípio da igualdade
e da liberdade e a existência real das desigualdades, bem como o princípio da
legitimidade do conflito e a existência de contradições materiais introduzindo,
para isso, a ideia dos direitos (econômicos, sociais, políticos e culturais).
Graças aos direitos, os desiguais conquistam a igualdade, entrando no espaço
político para reivindicar a participação nos direitos existentes e, sobretudo
para criar novos direitos. Estes são novos não simplesmente porque não existiam
anteriormente, mas porque são diferentes daqueles que existem, uma vez que
fazem surgir, como cidadãos, novos sujeitos políticos que os afirmaram e os
fizeram ser reconhecidos por toda a sociedade.
4. Graças à ideia e à prática da
criação de direitos, a democracia não define a liberdade apenas pela ausência
de obstáculos externos à ação, mas a define pela autonomia, isto é, pela
capacidade dos sujeitos sociais e políticos darem a si mesmos suas próprias
normas e regras de ação. Passa-se, portanto, de uma definição negativa da
liberdade – o não obstáculo ou o não-constrangimento externo – a uma definição
positiva – dar a si mesmo suas regras e normas de ação. A liberdade possibilita
aos cidadãos instituir contra poderes sociais por meio dos quais interferem
diretamente no poder por meio de reivindicações e controle das ações estatais.
5. Pela criação dos direitos, a
democracia surge como o único regime político realmente aberto às mudanças
temporais, uma vez que faz surgir o novo como parte de sua existência e,
consequentemente, a temporalidade é constitutiva de seu modo de ser, de maneira
que a democracia é a sociedade verdadeiramente histórica, isto é, aberta ao
tempo, ao possível, às transformações e ao novo. Com efeito, pela criação de
novos direitos e pela existência dos contra-poderes sociais, a sociedade
democrática não está fixada numa forma para sempre determinada, pois não cessa
de trabalhar suas divisões e diferenças internas, de orientar-se pela
possibilidade objetiva de alterar-se pela própria práxis;
6. Única forma sócio-política na
qual o caráter popular do poder e das lutas tende a evidenciar-se nas
sociedades de classes, na medida em que os direitos só ampliam seu alcance ou
só surgem como novos pela ação das classes populares contra a cristalização
jurídico-política que favorece a classe dominante. Em outras palavras, a marca
da democracia moderna, permitindo sua passagem de democracia liberal á
democracia social, encontra-se no fato de que somente as classes populares e os
excluídos (as “minorias”) reivindicam direitos e criam novos direitos;
7. Forma política na qual a
distinção entre o poder e o governante é garantida não só pela presença de leis
e pela divisão de várias esferas de autoridade, mas também pela existência das
eleições, pois estas ( contrariamente do que afirma a ciência política) não
significam mera “alternância no poder”,
mas assinalam que o poder está sempre vazio, que seu detentor é a sociedade e
que o governante apenas o ocupa por haver recebido um mandato temporário para
isto. Em outras palavras, os sujeitos políticos não são simples votantes, mas
eleitores. Eleger significa não só exercer o poder, mas manifestar a origem do
poder, repondo o princípio afirmado pelos romanos quando inventaram a política:
eleger é “dar a alguém aquilo que se possui, porque ninguém pode dar o que não
tem”, isto é, eleger é afirmar-se soberano para escolher ocupantes temporários
do governo.
Dizemos, então, que uma sociedade
— e não um simples regime de governo — é democrática quando, além de eleições,
partidos políticos, divisão dos três poderes da república, respeito à vontade
da maioria e da minoria, institui algo mais profundo, que é condição do próprio
regime político, ou seja, quando institui direitos e que essa instituição é uma
criação social, de tal maneira que a atividade democrática social realiza-se
como uma contra poder social que determina, dirige, controla e modifica a ação
estatal e o poder dos governantes.
Se esses são os principais traços
da sociedade democrática, podemos avaliar as enormes dificuldades para
instituir a democracia no Brasil. De fato, a sociedade brasileira é
estruturalmente violenta, hierárquica, vertical, autoritária e oligárquica e o
Estado é patrimonialista e cartorial, organizado segundo a lógica clientelista
e burocrática. O clientelismo bloqueia a prática democrática da
representação — o representante não é
visto como portador de um mandato dos representados, mas como provedor de
favores aos eleitores. A burocracia bloqueia a democratização do Estado porque
não é uma organização do trabalho e sim uma forma de poder fundada em três
princípios opostos aos democráticos: a hierarquia, oposta à igualdade; o segredo,
oposto ao direito à informação; e a rotina de procedimentos, oposta à abertura
temporal da ação política.
Além disso, social e
economicamente nossa sociedade está polarizada entre a carência absoluta das
camadas populares e o privilégio absoluto das camadas dominantes e dirigentes,
bloqueando a instituição e a consolidação da democracia. Um privilégio é, por
definição, algo particular que não pode generalizar-se nem universalizar-se sem
deixar de ser privilégio. Uma carência é uma falta também particular ou
específica que se exprime numa demanda também particular ou específica, não
conseguindo generalizar-se nem universalizar-se. Um direito, ao contrário de
carências e privilégios, não é particular e específico, mas geral e universal, seja porque é o mesmo e válido para todos os
indivíduos, grupos e classes sociais, seja porque embora diferenciado é
reconhecido por todos (como é caso dos chamados direitos das minorias). Assim,
a polarização econômico-social entre a carência e o privilégio ergue-se como
obstáculo à instituição de direitos, definidora da democracia.
A esses obstáculos, podemos
acrescentar ainda aquele decorrente do neoliberalismo, qual seja o encolhimento
do espaço público e o alargamento do espaço privado. Economicamente, trata-se
da eliminação de direitos econômicos, sociais e políticos garantidos pelo poder
público, em proveito dos interesses privados da classe dominante, isto é, em
proveito do capital; a economia e a
política neoliberais são a decisão de destinar os fundos públicos aos
investimentos do capital e de cortar os investimentos públicos destinados aos
direitos sociais, transformando-os em serviços definidos pela lógica do
mercado, isto é, a privatização dos direitos transformados em serviços,
privatização que aumenta a cisão social entre a carência e o privilégio,
aumentando todas formas de exclusão. Politicamente o encolhimento do público e
o alargamento do privado colocam em evidência o bloqueio a um direito
democrático fundamental sem o qual a cidadania, entendida como participação
social, política e cultural é impossível, qual seja, o direito à informação.
Parte II
II. Os meios de comunicação como
exercício de poder
Podemos focalizar o exercício do
poder pelos meios de comunicação de massa sob dois aspectos principais: o
econômico e o ideológico.
Do ponto de vista econômico, os
meios de comunicação fazem parte da indústria cultural. Indústria porque são
empresas privadas operando no mercado e que, hoje, sob a ação da chamada
globalização, passa por profundas mudanças estruturais, “num processo nunca
visto de fusões e aquisições, companhias globais ganharam posições de domínio
na mídia.”, como diz o jornalista Caio Túlio Costa. Além da forte concentração
(os oligopólios beiram o monopólio), também é significativa a presença, no setor
das comunicações, de empresas que não tinham vínculos com ele nem tradição
nessa área. O porte dos investimentos e a perspectiva de lucros jamais vistos
levaram grupos proprietários de bancos, indústria metalúrgica, indústria
elétrica e eletrônica, fabricantes de armamentos e aviões de combate, indústria
de telecomunicações a adquirir, mundo afora, jornais, revistas, serviços de
telefonia, rádios e televisões, portais de internet, satélites, etc..
No caso do Brasil, o poderio
econômico dos meios é inseparável da forma oligárquica do poder do Estado,
produzindo um dos fenômenos mais contrários à democracia, qual seja, o que
Alberto Dines chamou de “coronelismo eletrônico”, isto é, a forma privatizada
das concessões públicas de canais de rádio e televisão, concedidos a
parlamentares e lobbies privados, de tal maneira que aqueles que deveriam
fiscalizar as concessões públicas se tornam concessionários privados,
apropriando-se de um bem público para manter privilégios, monopolizando a
comunicação e a informação. Esse privilégio é um poder político que se ergue
contra dois direitos democráticos essenciais: a isonomia (a igualdade perante a
lei) e a isegoria (o direito à palavra ou o igual direito de todos de
expressar-se em público e ter suas opiniões publicamente discutidas e
avaliadas). Numa palavra, a cidadania democrática exige que os cidadãos estejam
informados para que possam opinar e intervir politicamente e isso lhes é
roubado pelo poder econômico dos meios de comunicação.
A isonomia e a isegoria são também
ameaçadas e destruídas pelo poder ideológico dos meios de comunicação. De fato,
do ponto de vista ideológico, a mídia exerce o poder sob a forma do denominamos
a ideologia da competência, cuja peculiaridade está em seu modo de aparecer sob
a forma anônima e impessoal do discurso do conhecimento, e cuja eficácia
social, política e cultural está fundada na crença na racionalidade
técnico-científica.
A ideologia da competência pode
ser resumida da seguinte maneira: não é qualquer um que pode em qualquer lugar
e em qualquer ocasião dizer qualquer coisa a qualquer outro. O discurso
competente determina de antemão quem tem o direito de falar e quem deve ouvir,
assim como pré-determina os lugares e as circunstâncias em que é permitido
falar e ouvir, e define previamente a forma e o conteúdo do que deve ser dito e
precisa ser ouvido. Essas distinções têm como fundamento uma distinção
principal, aquela que divide socialmente os detentores de um saber ou de um
conhecimento (científico, técnico, religioso, político, artístico), que podem
falar e têm o direito de mandar e comandar, e os desprovidos de saber, que
devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia da competência institui a
divisão social entre os competentes, que sabem e por isso mandam, e os
incompetentes, que não sabem e por isso obedecem.
Enquanto discurso do
conhecimento, essa ideologia opera com a figura do especialista. Os meios de
comunicação não só se alimentam dessa figura, mas não cessam de institui-la
como sujeito da comunicação. O especialista competente é aquele que, no rádio,
na TV, na revista, no jornal ou no multimídia, divulga saberes, falando das
últimas descobertas da ciência ou nos ensinando a agir, pensar, sentir e viver.
O especialista competente nos ensina a bem fazer sexo, jardinagem, culinária,
educação das crianças, decoração da casa, boas maneiras, uso de roupas
apropriadas em horas e locais apropriados, como amar Jesus e ganhar o céu,
meditação espiritual, como ter um corpo juvenil e saudável, como ganhar
dinheiro e subir na vida. O principal
especialista, porém, não se confunde com nenhum dos anteriores, mas é uma
espécie de síntese, construída a partir das figuras precedentes: é aquele que
explica e interpreta as notícias e os acontecimentos econômicos, sociais,
políticos, culturais, religiosos e esportivos, aquele que devassa, eleva e
rebaixa entrevistados, zomba, premia e pune calouros — em suma, o chamado “formador de opinião” e
o “comunicador”.
Ideologicamente, o poder da
comunicação de massa não é um simples inculcação de valores e ideias, pois,
dizendo-nos o que devemos pensar, sentir, falar e fazer, o especialista, o
formador de opinião e o comunicados nos dizem que nada sabemos e por isso seu
poder se realiza como manipulação e intimidação social e cultural.
Um dos aspectos mais terríveis
desse duplo poder dos meios de comunicação se manifesta nos procedimentos
midiáticos de produção da culpa e condenação sumária dos indivíduos, por meio
de um instrumento psicológico profundo: a suspeição, que pressupõe a presunção
de culpa. Ao se referir ao período do Terror, durante a Revolução
Francesa, Hegel considerou que uma de
suas marcas essenciais é afirmar que, por princípio, todos são suspeitos e que
os suspeitos são culpados antes de qualquer prova. Ao praticar o terror, a
mídia fere dois direitos constitucionais democráticos, instituídos pela
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789 (Revolução Francesa) e
pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, quais sejam: a
presunção de inocência (ninguém pode ser considerado culpado antes da prova da
culpa) e a retratação pública dos atingidos por danos físicos, psíquicos e
morais, isto é, atingidos pela infâmia, pela injúria e pela calúnia. É para
assegurar esses dois direitos que as sociedades democráticas exigem leis para
regulação dos meios de comunicação, pois essa regulação é condição da liberdade
e da igualdade que definem a sociedade democrática.
Parte III
III.
Faz parte da vida da grande
maioria da população brasileira ser espectadora de um tipo de programa de
televisão no qual a intimidade das pessoas é o objeto central do espetáculo:
programas de auditório, de entrevistas e de debates com adultos, jovens e
crianças contando suas preferências pessoais desde o sexo até o brinquedo, da
culinária ao vestuário, da leitura à religiosidade, do ato de escrever ou
encenar uma peça teatral, de compor uma música ou um balé até os hábitos de
lazer e cuidados corporais.
As ondas sonoras do rádio e as
transmissões televisivas tornam-se cada vez mais consultórios sentimental,
sexual, gastronômico, geriátrico, ginecológico, culinário, de cuidados com o
corpo (ginástica, cosméticos, vestuário, medicamentos), de jardinagem,
carpintaria, bastidores da criação artística, literária e da vida doméstica. Há
programas de entrevista no rádio e na televisão que ou simulam uma cena
doméstica – um almoço, um jantar – ou se realizam nas casas dos entrevistados
durante o café da manhã, o almoço ou o jantar, nos quais a casa é exibida, os
hábitos cotidianos são descritos e comentados, álbuns de família ou a própria
são mostrados ao vivo e em cores. Os entrevistados e debatedores, os
competidores dos torneios de auditório, os que aparecem nos noticiários, todos
são convidados e mesmo instados com vigor a que falem de suas preferências, indo
desde sabores de sorvete até partidos políticos, desde livros e filmes até
hábitos sociais. Não é casual que os noticiários, no rádio e na televisão, ao
promoverem entrevistas em que a notícia é intercalada com a fala dos direta ou
indiretamente envolvidos no fato, tenham sempre repórteres indagando a alguém:
“o que você sentiu/sente com isso?” ou “o que você achou/acha disso?” ou “você
gosta? não gosta disso?”. Não se pergunta aos entrevistados o que pensam ou o
que julgam dos acontecimentos, mas o que sentem, o que acham, se lhes agrada ou
desagrada.
Também tornou-se um hábito
nacional jornais e revistas especializarem-se cada vez mais em telefonemas a
“personalidades” indagando-lhes sobre o que estão lendo no momento, que filme
foram ver na última semana, que roupa usam para dormir, qual a lembrança
infantil mais querida que guardam na memória, que música preferiam aos 15 anos
de idade, o que sentiram diante de uma catástrofe nuclear ou ecológica, ou
diante de um genocídio ou de um resultado eleitoral, qual o sabor do sorvete
preferido, qual o restaurante predileto, qual o perfume desejado. Os assuntos
se equivalem, todos são questão de gosto ou preferência, todos se reduzem à
igual banalidade do “gosto” ou “não gosto”, do “achei ótimo” ou “achei horrível”.
Todos esses fatos nos conduzem a
uma conclusão: a mídia está imersa na cultura do narcisismo.
Como observa Christopher Lash, em
A Cultura do Narcisismo, [...] para que algo seja aceito como real, basta que
apareça como crível ou plausível, ou como oferecido por alguém confiável Os
fatos cedem lugar a declarações de “personalidades autorizadas”, que não
transmitem informações, mas preferências e estas se convertem imediatamente em
propaganda. Como escreve Lash, “sabendo que um público cultivado é ávido por
fatos e cultiva a ilusão de estar bem informado, o propagandista moderno evita
slogans grandiloquentes e se atém a ‘fatos’, dando a ilusão de que a propaganda
é informação”.
Qual a base de apoio da
credibilidade e da confiabilidade? A resposta encontra-se num outro ponto comum
aos programas de auditório, às entrevistas, aos debates, às indagações
telefônicas de rádios, revistas e jornais, aos comerciais de propaganda.
Trata-se do apelo à intimidade, à personalidade, à vida privada como suporte e
garantia da ordem pública. Em outras palavras, os códigos da vida pública
passam a ser determinados e definidos pelos códigos da vida privada,
abolindo-se a diferença entre espaço público e espaço privado. Assim, as
relações interpessoais, as relações intersubjetivas e as relações grupais
aparecem com a função de ocultar ou de dissimular as relações sociais enquanto
sociais e as relações políticas enquanto políticas, uma vez que a marca das
relações sociais e políticas é serem determinadas pelas instituições sociais e
políticas, ou seja, são relações mediatas, diferentemente das relações
pessoais, que são imediatas, isto é, definidas pelo relacionamento direto entre
pessoas e por isso mesmo nelas os sentimentos, as emoções, as preferências e os
gostos têm um papel decisivo. As relações sociais e políticas, que são
mediações referentes a interesses e a direitos regulados pelas instituições,
pela divisão social das classes e pela separação entre o social e o poder
político, perdem sua especificidade e passam a operar sob a aparência da vida
privada, portanto, referidas a preferências, sentimentos, emoções, gostos,
agrado e aversão.
Não é casual, mas uma
consequência necessária dessa privatização do social e do político, a
destruição de uma categoria essencial das democracias, qual seja a da opinião
pública. Esta, em seus inícios (desde a Revolução Francesa de 1789), era
definida como a expressão, no espaço público, de uma reflexão individual ou
coletiva sobre uma questão controvertida e concernente ao interesse ou ao direito
de uma classe social, de um grupo ou mesmo da maioria. A opinião pública era um
juízo emitido em público sobre uma questão relativa à vida política, era uma
reflexão feita em público e por isso definia-se como uso público da razão e
como direito à liberdade de pensamento e de expressão.
É sintomático que, hoje, se fale
em “sondagem de opinião”. Com efeito, a palavra sondagem indica que não se
procura a expressão pública racional de interesses ou direitos e sim que se vai
buscar um fundo silencioso, um fundo não formulado e não refletido, isto é, que
se procura fazer vir à tona o não-pensado, que existe sob a forma de
sentimentos e emoções, de preferências, gostos, aversões e predileções, como se
os fatos e os acontecimentos da vida social e política pudessem vir a se
exprimir pelos sentimentos pessoais. Em lugar de opinião pública, tem-se a
manifestação pública de sentimentos.
Nada mais constrangedor e, ao
mesmo tempo, nada mais esclarecedor do que os instantes em que o noticiário
coloca nas ondas sonoras ou na tela os participantes de um acontecimento
falando de seus sentimentos, enquanto locutores explicam e interpretam o que se
passa, como se os participantes fossem incapazes de pensar e de emitir juízo
sobre aquilo de que foram testemunhas diretas e partes envolvidas.
Constrangedor, porque o rádio e a televisão declaram tacitamente a
incompetência dos participantes e envolvidos para compreender e explicar fatos
e acontecimentos de que são protagonistas. Esclarecedor, porque esse
procedimento permite, no instante mesmo em que se dão, criar a versão do fato e
do acontecimento como se fossem o próprio fato e o próprio acontecimento.
Assim, uma partilha é claramente estabelecida: os participantes “sentem”,
portanto, não sabem nem compreendem (não pensam); em contrapartida, o locutor
pensa, portanto, sabe e, graças ao seu saber, explica o acontecimento.
É possível perceber três
deslocamentos sofridos pela ideia e prática da opinião pública: o primeiro,
como salientamos, é a substituição da ideia de uso público da razão para
exprimir interesses e direitos de um indivíduo, um grupo ou uma classe social
pela ideia de expressão em público de sentimentos, emoções, gostos e
preferências individuais; o segundo, como também observamos, é a substituição
do direito de cada um e de todos de opinar em público pelo poder de alguns para
exercer esse direito, surgindo, assim, a curiosa expressão “formador de
opinião”, aplicada a intelectuais, artistas e jornalistas; o terceiro, que
ainda não havíamos mencionado, decorre de uma mudança na relação entre s vários
meios de comunicação sob os efeitos das tecnologias eletrônica e digital e da
formação de oligopólios midiáticos globalizados (alguns autores afirmam que o
século XXI começou com a existência de 10 ou 12 conglomerados de mais media de
alcance global). Esse terceiro deslocamento se refere à forma de ocupação do
espaço da opinião pública pelos profissionais dos meios de comunicação. Esses
deslocamentos explicam algo curioso, ocorrido durante as sondagens de intenção
de voto nas eleições presidenciais de 2006: diante dos resultados, uma
jornalista do jornal O Globo escreveu que o povo estava contra a opinião
pública!
O caso mais interessante é, sem
dúvida, o do jornalismo impresso. Em tempos passados, cabia aos jornais a tarefa
noticiosa e um jornal era fundamentalmente um órgão de notícias. Sem dúvida, um
jornal possuía opiniões e as exprimia: isso era feito, de um lado, pelos
editorais e por artigos de não-jornalistas, e, de outro, pelo modo de
apresentação da notícia (escolha das manchetes e do “olho”, determinação da
página em que deveria aparecer e na vizinhança de quais outras, do tamanho do
texto, da presença ou ausência de fotos, etc.). Ora, com os meios eletrônicos e
digitais e a televisão, os fatos tendem a ser noticiados enquanto estão
ocorrendo, de maneira que a função noticiosa do jornal é prejudicada, pois a
notícia impressa é posterior à sua transmissão pelos meios eletrônicos e pela
televisão. Ou na linguagem mais costumeira dos meios de comunicação: no mercado
de notícias, o jornalismo impresso vem perdendo competitividade (alguns chamam
a isso de progresso; outros, de racionalidade inexorável do mercado!).
O resultado dessa situação foi
duplo: de um lado, a notícia é apresentada de forma mínima, rápida e, frequentemente,
inexata – o modelo conhecido como News Letter – e, de outro, deu-se a passagem
gradual do jornal como órgão de notícias a órgão de opinião, ou seja, os
jornalistas comentam e interpretam as notícias, opinando sobre elas.
Gradualmente desaparece uma figura essencial do jornalismo: o jornalismo
investigativo, que cede lugar ao jornalismo assertivo ou opinativo. Os
jornalista passam, assim, o ocupar o lugar que, tradicionalmente, cabia a
grupos e classes sociais e a partidos políticos e, além disso, sua opinião não
fica restrita ao meio impresso, mas passa a servir como material para os
noticiários de rádio e televisão, ou seja, nesses noticiários, a notícia é
interpretada e avaliada graças à referência às colunas dos jornais.
Os deslocamentos mencionados e,
particularmente, este último, têm consequências graves sob dois aspectos
principais:
1) uma vez que o jornalista
concentra poderes e forma a opinião pública, pode sentir-se tentado a ir além
disso e criar a própria realidade, isto é, sua opinião passa a ter o valor de
um fato e a ser tomada como um acontecimento real ;
2) os efeitos da concentração do
poder econômico midiático. Os meios de comunicação tradicionais (jornal, rádio,
cinema, televisão) sempre foram propriedade privada de indivíduos e grupos, não
podendo deixar de exprimir seus interesses particulares ou privados, ainda que
isso sempre tenha imposto problemas e limitações à liberdade de expressão, que
fundamenta a ideia de opinião pública. Hoje, porém, os conglomerados de alcance
global controlam não só os meios tradicionais, mas também os novos meios
eletrônicos e digitais, e avaliam em termos de custo-benefício as vantagens e
desvantagens do jornalismo escrito ou da imprensa, podendo liquidá-la, se não
acompanhar os ares do tempo.
Esses dois aspectos incidem
diretamente sobre a transformação da verdade e da falsidade em questão de
credibilidade e plausibilidade. Rápido,
barato, inexato, partidarista, mescla de informações aleatoriamente obtidas e
pouco confiáveis, não investigativo, opinativo ou assertivo, detentor da
credibilidade e da plausibilidade, o jornalismo se tornou protagonista da
destruição da opinião pública.
De fato, a desinformação é o
principal resultado da maioria dos noticiários nos jornais, no rádio e na
televisão, pois, de modo geral, as notícias são apresentadas de maneira a
impedir que se possa localizá-la no espaço e no tempo.
As diferenças próprias do espaço percebido
(perto, longe, alto, baixo, grande, pequeno) são apagadas; o aparelho de rádio
e a tela da televisão tornam-se o único espaço real. As distâncias e
proximidades, as diferenças geográficas e territoriais são ignoradas, de tal
modo que algo acontecido na China, na Índia, nos Estados Unidos ou em Campina
Grande apareça igualmente próximo e igualmente distante.
Ausência de referência temporal:
os acontecimentos são relatados como se não tivessem causas passadas nem
efeitos futuros; surgem como pontos puramente atuais ou presentes, sem
continuidade no tempo, sem origem e sem consequências; existem enquanto forem
objetos de transmissão e deixam de existir se não forem transmitidos. Têm a
existência de um espetáculo e só permanecem na consciência dos ouvintes e
espectadores enquanto permanecer o espetáculo de sua transmissão.
Como operam efetivamente os
noticiários?
Em primeiro lugar, estabelecem
diferenças no conteúdo e na forma das notícias de acordo com o horário da
transmissão e o público, rumando para o sensacionalismo e o popularesco nos
noticiários diurnos e do início da noite e buscando sofisticação e aumento de
fatos nos noticiários de fim de noite. Em segundo, por seleção das notícias,
omitindo aquelas que possam desagradar o patrocinador ou os poderes
estabelecidos. Em terceiro, pela construção deliberada e sistemática de uma
ordem apaziguadora: em sequência, apresentam, no início, notícias locais, com
ênfase nas ocorrências policiais, sinalizando o sentimento de perigo; a seguir,
entram as notícias regionais, com ênfase em crises e conflitos políticos e
sociais, sinalizando novamente o perigo; passam às notícias internacionais, com
ênfase em guerras e cataclismos (maremoto, terremoto, enchentes, furacões),
ainda uma vez sinalizando perigo; mas concluem com as notícias nacionais,
enfatizando as ideias de ordem e segurança, encarregadas de desfazer o medo produzido
pelas demais notícias. E, nos finais de semana, terminam com notícias de
eventos artísticos ou sobre animais (nascimento de um ursinho, fuga e retorno
de um animal em cativeiro, proteção a espécies ameaçadas de extinção), de
maneira a produzir o sentimento de bem-estar no espectador pacificado, sabedor
de que, apesar dos pesares, o mundo vai bem, obrigado.
Paradoxalmente, rádio e televisão
podem oferecer-nos o mundo inteiro num instante, mas o fazem de tal maneira que
o mundo real desaparece, restando apenas retalhos fragmentados de uma realidade
desprovida de raiz no espaço e no tempo. Como desconhecemos as determinações
econômico-territoriais (geográficas, geopolíticas, etc.) e como ignoramos os
antecedentes temporais e as consequências dos fatos noticiados, não podemos
compreender seu verdadeiro significado. Essa situação se agrava com a TV a
cabo, com emissoras dedicadas exclusivamente a notícias, durante 24 horas,
colocando num mesmo espaço e num mesmo tempo
(ou seja, na tela) informações de procedência, conteúdo e significado
completamente diferentes, mas que se tornam homogêneas pelo modo de sua
transmissão. O paradoxo está em que há uma verdadeira saturação de informação,
mas, ao fim, nada sabemos, depois de termos tido a ilusão de que fomos informados
sobre tudo.
Se não dispomos de recursos que
nos permitam avaliar a realidade e a veracidade das imagens transmitidas, somos
persuadidos de que efetivamente vemos o mundo quando vemos a TV ou quando
navegamos pela internet. Entretanto, como o que vemos são as imagens
escolhidas, selecionadas, editadas, comentadas e interpretadas pelo transmissor
das notícias, então é preciso reconhecer que a TV é o mundo ou que a internet é
o mundo.
A multimídia potencializa o
fenômeno da indistinção entre as mensagens e
entre os conteúdos. Como todas as mensagens estão integradas num mesmo
padrão cognitivo e sensorial, uma vez que educação, notícias e espetáculos são
fornecidos pelo mesmo meio, os conteúdos se misturam e se tornam
indiscerníveis. No sistema de comunicação multimídia a própria realidade fica totalmente imersa em
uma composição de imagens virtuais num mundo irreal, no qual as aparências não
apenas se encontram na tela comunicadora da experiência, mas se transformam em
experiência. Todas as mensagens de todos os tipos são incluídas no meio por que
fica tão abrangente, tão diversificado, tão maleável, que absorve no mesmo
texto ou no mesmo espaço/tempo toda a experiência humana, passada, presente e
futura, como num ponto único do universo.
Se, portanto, levarmos em
consideração o monopólio da informação pelas empresas de comunicação de massa,
podemos considerar, do ponto de vista da ação política, as redes sociais como
ação democratizadora tanto por quebrar esse monopólio, assegurando a produção e
a circulação livres da informação, como também por promover acontecimentos
políticos de afirmação do direito democrático à participação. No entanto, os
usuários das redes sociais não possuem autonomia em sua ação e isto sob dois
aspectos: em primeiro lugar, não possuem o domínio tecnológico da ferramenta
que empregam e, em segundo, não detêm qualquer poder sobre a ferramenta
empregada, pois este poder é uma estrutura altamente concentrada, a Internet,
com dez servidores nos Estados Unidos e dois no Japão, nos quais estão alojados
todos os endereços eletrônicos mundiais, de maneira que, se tais servidores
decidirem se desligar, desaparece toda a internet; além disso, a gerência da
internet é feita por uma empresa norte-americana em articulação com o
Departamento de Comércio dos Estados Unidos, isto é, gere o cadastro da
internet mundial. Assim, sob o aspecto maravilhosamente criativo e anárquico
das redes sociais em ação política ocultam-se o controle e a vigilância sobre
seus usuários em escala planetária, isto é, sobre toda a massa de informação do
planeta.
Na perspectiva da democracia, a
questão que se coloca, portanto, é saber quem detêm o controle dessa massa
cósmica de informações. Ou seja, o
problema é saber quem tem a gestão de toda a massa de informações que controla
a sociedade, quem utiliza essas informações, como e para que as utiliza,
sobretudo quando se leva em consideração um fato técnico, que define a operação
da informática, qual seja, a concentração e centralização da informação,
pois tecnicamente, os sistemas
informáticos operam em rede, isto é, com a centralização dos dados e a produção
de novos dados pela combinação dos já coletados.
Fontes
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