'Os demônios’, juntamente com
'Crime e Castigo', 'O Idiota' e 'Os irmãos Karamazov', integra a última fase da
carreira do escritor russo. A primeira
impressão que se tem na leitura de Os Demônios é de incongruência, desarmonia e
desfiguração. Tudo é o que não deveria ser. Intelectuais não são intelectuais, governadores
não governam, e as relações familiares são desemaranhadas. Assassinato é
considerado fidelidade; feiura, beleza; blasfêmia, religião; erro, verdade; e
um milhão de cabeças reunidas num agitado aglomerado é a visão do milenarismo
social. Algum tipo de medida foi perdido; a proporção imperceptível; e a
dignidade e identidade pessoal esquecida. Todos e tudo estão de alguma maneira
mutilados. Sobre um fundo de caos sobressaem figuras arquetípicas do herói e do
anti-herói.
O romance publicado em 1871,
conta a história de um pequeno grupo de revoltosos socialistas (“os nossos”)
numa certa província da Rússia (província não referida, restando a impressão de
que se trata de uma região interiorana), os quais têm em mente levar adiante o
movimento até que ele alcance todo o vasto território russo — aliás, os membros
desse pequeno grupo crêem na existência de ramificações do seu movimento por
toda parte — e com isso ponha por terra o estado constituído a fim de
substituí-lo por uma sociedade justa e ideal. É escrito em três partes e o
narrador é Anton Lavriéntev, que só é identificado quase no fim da primeira
parte. A história se inicia com a biografia de Stiépan Trofímovitch; com a
descrição dos traços de personalidade de Nikolai e da imponente Varvara
Pietrovna, proprietária rica que subjuga Stiépan. Mas a gama de personagens é
imensa e conta, por exemplo, com a marcante Mária Timofêievna, uma mulher coxa
que é espancada pelo seu irmão, o capitão Lebiádkin.
Com sua trama complexa e
polifônica, o livro ainda hoje é mal compreendido. Alguns o interpretaram como
um livro absurdo- fruto de uma mente insana. Outros o analisam como um romance
anti-revolucionário e reacionário. Dostoiévski parece neste livro demonstrar
incrível sensibilidade para perceber as tendências históricas e as várias
tendências políticas (ocidentalistas e eslavófilos) em luta sob um regime
autocrático. Para Pierre Lamblé, o objetivo do romance é demonstrar o curso dos
fatos, mas também fazer uma “ameaça” e uma previsão para a Rússia. Para este
Lamblé a genialidade do autor foi perceber que a força caótica do movimento
revolucionário vinha justamente da violência, tirania, ineficiência e “miopia”
da administração, da elite (autoridades, igreja) e do governo russos. Neste
contexto, homens e forças políticas que seriam ineficazes e ridículos em outras
condições adquirem força e potência.
Por Claudio Castoriadis