Romance dedicado à sua segunda
esposa, é obra de fôlego. Trata-se da
biografia de Aliéksei Fiódorovitch, um rapaz notável não tanto pelos seus
feitos heroicos, mas pela originalidade do seu ser. O autor divide o romance em
duas partes, a primeira das quais corresponde a um primeiro momento da
juventude do herói, e a segunda ao momento presente. Aliocha é o terceiro filho
de um proprietário de terras, que teve dois casamentos, o primeiro dos quais
gerou Dimítri, e o segundo Ivan, mais velho que o nosso herói. Aos quatro anos,
Aliocha se vê órfão de mãe, e ele e Ivan serão criados pela mulher de um
General que adotara, anos antes, sua mãe. Entra para a vida monástica, atraído
pela presença de um monge idoso e pobre, respeitado pela sua bondade e
sabedoria, o stáriets Zósima. Aos vinte anos, retorna ao convívio paterno,
submetendo-se com doçura às inconstâncias de espírito do velho Fiódor
Pávlovitch, seu pai, homem avaro e sensual, sujeito às paixões da carne e do espírito.
A trama nos leva ao
assassinato do velho, e à acusação do filho Dimítri, de quem o velho planejara
roubar a amante. Ivan, irmão mais novo de Aliocha, revive no romance a personalidade
marcante de Tchedlóvski, amigo da juventude de Dostoiévski, libertino e místico,
por quem este tanto se admirara, e é pela boca de Ivan que Dostoiévski expressa
o seu sentimento de religiosidade, embora se declare ateu. O poema O Grande
Inquisidor, poema em prosa, que constitui o capítulo V, II Parte, Livro V da
obra, constitui um dos pontos altos do romance, em que o seu autor, Ivan ou
Dostoiévski, expõe a necessidade de Deus para os homens: “Porque não há para o
homem, que fica livre, preocupação mais constante e mais ardente do que procurar
um ser diante do qual se inclinar”. Esta ideia retoma o pensamento de Voltaire,
segundo o qual “Si Dieun’existait pas, il foudrait l’inventer”, citação da
Epístola ao Autor dos “Três Impostores”, mencionada no romance, além de alguns
argumentos do Tratado de Metafisica, do mesmo Voltaire. Neste mesmo poema,
ainda aparece a frase que constituirá o enigma da nossa proposição: “tudo é
permitido”, e que é apresentada, em seu argumento, num encontro entre a Família
Fiódorovitch e o velho monge.
Para Ivan, não há nenhuma lei
natural que ordene ao homem amar a humanidade; se o amor reinou até o presente
sobre a terra, isto se deve não à lei natural, mas unicamente à crença das
pessoas em sua imortalidade. Se se destrói no homem a fé em sua imortalidade,
não somente o amor secará nele, mas também a força de continuar a vida no mundo.
Mais ainda, não haverá então nada de imoral, tudo será autorizado, até mesmo a
antropofagia. Nesse sentido, a lei moral da natureza deve tornar-se o inverso
absoluto da precedente lei religiosa; o egoísmo, mesmo levado até a
perversidade, deve não somente ser autorizado, mas reconhecido como a saída
necessária, a mais razoável, a mais nobre. Ao ouvir essa explanação, Dimítri,
seu irmão mais velho, se apropria da proposição, repetindo-a e calando-se. Numa
discussão com seu pai, a respeito da amante, o velho lhe acusa de parricida,
cena que é seguida pela prostração do monge Zósima aos pés de Dimitri, dizendo:
“Perdoem, perdoem todos!”, ato que surpreende a todos, em especial Aliocha. A
significação deste ato escapa aos presentes, mas não à análise que dela faz
Sigmund Freud, em 1928. Outro ponto DOSTOIÉVSKI E O PARRICÍDIO (1995) a
destacar na obra e que merecerá o comentário de Freud é o capítulo X, Livro
XII, IV Parte, intitulado “A defesa. Uma arma de dois gumes”, em que o representante
da defesa, no tribunal movido contra Dimítri, afirma ser a psicologia, embora notável
como ciência, uma arma de dois gumes, ou seja, pode-se utilizá-la tanto para a acusação
quanto para a defesa. Em capítulos seguintes, Dostoiévski irá buscar argumentos
para defender o acusado, lembrando, por exemplo, que o amor a um pai somente
pode existir na medida em que o filho conhecer este amor, de início. No
romance, aquele que se supõe filho bastardo do velho Fiódorovitch, Smerdiákov,
é quem realiza o ato de parricídio, mas a imputação de culpa atinge Ivan, que
se crê o instigador mental do assassínio.