Anatole France
Eis o que o sacristão da igreja
de Santa Eulália, em Neuville-d'Aumont, me contou debaixo da latada do
Cavalo-Branco, numa bela noite de verão, bebendo uma garrafa de velho vinho, à
saúde de um morto muito abastado, que ele havia enterrado honrosamente naquela
manhã mesma, sob um tecido cheio de belas lágrimas de prata. Meu finado e pobre
pai (quem fala é o sacristão) foi, em vida, coveiro. Era de humor agradável, e
isso sem dúvida decorria de sua profissão, porque se tem reparado que as pessoas
que trabalham nos cemitérios possuem espírito jovial. A morte não os atemoriza absolutamente;
jamais se preocupam com ela. Eu, que lhe estou falando, senhor, penetro num
cemitério, à noite, tão serenamente quanto no caramanchão do Cavalo-Branco. E
se, por acaso, encontro um espectro, não me inquieto absolutamente com isso,
porque reflito que ele pode perfeitamente ir cuidar de seus negócios, da mesma
forma que eu dos meus. Conheço os hábitos dos mortos e seu caráter. Sei a tal respeito
coisas que os próprios sacerdotes ignoram. E o senhor ficaria surpreso se lhe
contasse tudo que tenho visto. Mas, nem todas as verdades são próprias para
serem contadas, e meu pai, que, todavia, gostava de narrar histórias, não
revelou a vigésima parte do que sabia.
Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine. Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região, até, uns três velhos que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava numa esquina da Rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há. Nessa torrezinha, figuras e inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito, em latim, que "o amor é mais forte que a morte". O que se refere, acrescentava, ao amor divino. Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que as rendas de nossa região eram, antigamente, muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito. Anos, o jovem cavaleiro d'Aumont", com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine lembrava mais - uma dama, que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e se lhe podia ver, na mão, um desses anéis em que o ourives colocara duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significa. Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas, em Santa Eulália. Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que se não viam absolutamente as casas; claridade alguma era perceptível, no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem penso um cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem dificuldade, a esquina da Rua das Freiras com a Rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião, que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver - aquelas pessoas trajadas de veludo e de- brocado, - plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que seguravam longas bolsas de castão de ouro e damas com toucados de nadas, presos com um pente em diadema. Cavaleiros de e Luís davam a mão a essas senhoras, que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visível um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar, sem o menor ruído, e não se ouvia, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos tecidos.
Em compensação, repetia muitas vezes as mesmas narrativas e ao que eu saiba, relatou bem umas cem vezes a aventura de Catarina Fontaine. Catarina Fontaine era uma velha solteirona, que ele se lembrava de ter visto em criança. Não me surpreenderia se ainda houvesse na região, até, uns três velhos que ainda se recordem de ter ouvido falar a seu respeito, porque ela era muito conhecida e considerada, embora pobre. Morava numa esquina da Rua das Freiras, na torrezinha que o senhor ainda pode ver e que depende de um velho palacete arruinado, que dá para o jardim das Ursulinas. Há. Nessa torrezinha, figuras e inscrições meio apagadas. O falecido pároco de Santa Eulália, Levasseur, dizia aí estar escrito, em latim, que "o amor é mais forte que a morte". O que se refere, acrescentava, ao amor divino. Catarina Fontaine vivia sozinha nessa pequena habitação. Fazia rendas. O senhor sabe que as rendas de nossa região eram, antigamente, muito afamadas. Não se conheciam parentes ou amigos seus. Dizia-se que amara, aos dezoito. Anos, o jovem cavaleiro d'Aumont", com quem noivara secretamente. Mas as pessoas de bem não queriam acreditar absolutamente nisso e diziam tratar-se de uma história que fora imaginada, porque Catarina Fontaine lembrava mais - uma dama, que uma operária, conservava sob seus cabelos brancos os vestígios de uma grande beleza, possuía um ar triste e se lhe podia ver, na mão, um desses anéis em que o ourives colocara duas mãozinhas unidas e que era costume outrora os noivos trocarem. O senhor saberá, daqui a pouco, o que isso significa. Catarina Fontaine vivia santamente. Frequentava as igrejas e, todas as manhãs, qualquer que fosse o tempo, ia ouvir a missa de seis horas, em Santa Eulália. Ora, uma noite de dezembro, quando ela estava deitada em seu pequeno quarto, foi despertada pelo toque dos sinos; certa de estarem eles anunciando a primeira missa, a piedosa senhora vestiu-se e desceu à rua, onde a noite era tão fechada que se não viam absolutamente as casas; claridade alguma era perceptível, no céu negro. E reinava tamanho silêncio nessas trevas - que nem penso um cão ladrava ao longe - que a pessoa se sentia completamente separada do mundo dos vivos. Mas Catarina Fontaine, que conhecia cada uma das pedras onde pisava e que podia ir à igreja de olhos fechados, alcançou, sem dificuldade, a esquina da Rua das Freiras com a Rua da Paróquia, no ponto onde se ergue a casa de madeira que exibe uma árvore de Jessé, esculpida numa volumosa trave. Tendo alcançado esse local, ela viu que as portas da igreja estavam abertas e que deixavam sair uma grande claridade de círios. Continuou a caminhar e, tendo entrado, encontrou-se numa reunião, que enchia a igreja. Ela, porém, não reconhecia nenhum dos presentes, e estava surpresa ao ver - aquelas pessoas trajadas de veludo e de- brocado, - plumas no chapéu e trazendo espada, à maneira dos tempos de antanho. Havia senhoras que seguravam longas bolsas de castão de ouro e damas com toucados de nadas, presos com um pente em diadema. Cavaleiros de e Luís davam a mão a essas senhoras, que escondiam atrás do leque um rosto pintado, do qual só era visível um sinal no canto dos olhos! E todos iam colocar-se em seu lugar, sem o menor ruído, e não se ouvia, enquanto andavam, nem o som dos passos no lajedo, nem o roçagar dos tecidos.
As naves
laterais enchiam-se de multidão de jovens artesãos, de casaco pardo. Calções de
fustão e meias azuis, que seguravam pela cintura raparigas lindíssimas,
rosadas, que conservavam os olhos baixos. E, junto ás pias de água benta,
camponesas de saia vermelha e corpinho de atar, sentavam-se no chão com a
tranquilidade dos animais domésticos. Enquanto uns mocetões, de pé atrás delas,
- alavam os olhos, rodando o chapéu nos dedos. E todas aquelas fisionomias
silenciosas pareciam imobilizadas para sempre, no mesmo pensamento, suave e
triste. Ajoelhada em seu lugar costumeiro, Catarina Fontaine viu o sacerdote caminhar
para o altar, precedido por dois acólitos. Não reconheceu nem o sacerdote, nem
os ajudantes. Começou a missa. Era uma silenciosa missa, na qual não se ouvia
absolutamente o som dos lábios que se agitavam, nem o rumor da sinéta agitada
inutilmente. Catarina Fontaine sentia-se sob o olhar e sob a influência de seu
misterioso vizinho e, tendo olhado, sem quase volver a cabeça reconheceu o
jovem cavaleiro d'Aumont-Cléry, que a havia amado e que morrera fazia quarenta
e cinco anos. Reconheceu-o por um sinalzinho que ele possuía sob a Orelha
esquerda e, principalmente, pelo sombreado dos longos cílios negros em seu
rosto. Vestia o traje de caça, com botões dourados, que ele usara no dia em que
tendo-a encontrado no bosque de São Bernardo, roubara-lhe um beijo. Conservava
a Sua Mocidade e seu bom aspecto. Seu sorriso ainda mostrava uma dentadura de
jovem lobo. Catarina disse-lhe, baixinho:
Senhor, vós
que fostes meu amigo e a quem dei outrora o que uma jovem possui de mais
precioso, Deus vos tenha em sua graça! Possa ele me inspirar, finalmente, o
pesar pelo pecado que cometi convosco: porque é verdade que, de cabelos brancos
e próxima da morte, ainda não me arrependo de vos ter amado. Mas, finado amigo,
meu belo senhor, dizei-me, quem são essas pessoas trajadas à maneira antiga,
que estão assistindo aqui a esta silenciosa missa. O cavaleiro d'Aumont-Cléry
respondeu com uma voz mais débil que um sopro e, não obstante, mais clara que o
cristal:
— Catarina, esses homens e essas
mulheres são almas do purgatório, que ofenderam a Deus, pecando, a nosso
exemplo, pelo amor das criaturas, mas que nem por isso estão desligadas de
Deus, porque seu pecado foi, a exemplo do nosso, sem maldade. Enquanto separadas
daqueles que amavam sobre a terra, elas se purificam no fogo do purgatório, padecem
as dores da ausência, e para elas esse sofrimento é o mais cruel. São tão
infelizes que um anjo do céu se apiedou de seu martírio de amor. Com o consentimento
de Deus, reúne, todos os anos, durante uma hora da noite, o amigo à amiga em
sua igreja paroquial, onde lhes é permitido assistir à missa das sombras, segurando-se
pela mão. Esta é a verdade. Se me foi permitido ver-te aqui antes de tua morte,
Catarina, tal coisa não se realizou sem a permissão de Deus. E Catarina
Fontaine lhe respondeu:
— Bem desejaria morrer para
voltar a ser formosa como nos dias, meu finado senhor, em que te dava de beber
na floresta. Enquanto falavam assim, baixinho, um cônego muito idoso recolhia
as esmolas e apresentava uma grande salva de cobre aos presentes, que ali
deixavam cair sucessivamente moedas antigas, desde muito tempo fora de
circulação: escudos de seis libras, florins, ducados, nobres com a rosa, e as
moedas caíam em silêncio. Quando a salva de cobre lhe foi apresentada, o
cavaleiro depositou um Luís, que não fez mais ruído que as outras moedas de
ouro ou de prata. Depois, o velho cônego parou em frente de Catarina Fontaine,
que procurou em seu bolso, sem nele encontrar, um real. Então, não desejando
recusar sua dádiva, tirou do dedo o anel que o cavaleiro lhe dera na véspera de
sua morte, e atirou-o na concha de cobre. O anel de ouro, ao cair. Ressoou como
um pesado badalo de sino e, ao ruído atroador que ele fez, o cavaleiro, o
cônego, o oficiante, os agitaram, as damas, os cavaleiros, toda a assistência
desapareceu; os círios se apagaram e Catarina Fontaine ficou sozinha nas
Trevas". Tendo concluído assim sua narrativa, o sacristão bebeu um grande
copo de vinho, ficou um instante a meditar e depois prosseguiu, nestes termos: Contei-lhe
esta história exatamente como a ouvi muitas vezes de meu pai e creio que é verdadeira,
porque corresponde a tudo o que tenho observado das maneiras e dos costumes
peculiares dos defuntos. Convivi com os mortos, desde minha infância, e sei que
eles costumam voltar a seus amores.
— É por isso que os mortos
avarentos vagam, à noite, nas proximidades dos tesouros que eles esconderam
durante a vida. Montam boa guarda à volta de seu ouro; mas os cuidados que eles
tomam, longe de lhes servirem, prejudicam-nos, e não é raro descobrir-se dinheiro
enterrado na terra, pesquisando-se o sítio frequentado por um fantasma. Da mesma
forma, os finados maridos vêm atormentar, à noite, suas mulheres, casadas em segundas
núpcias, e eu poderia indicar muitos que vigiaram melhor suas esposas depois de
mortos do que o haviam feito em vida... Esses são dignos de censura, porque, em
boa justiça, os defuntos não deveriam ser ciumentos. Mas lhe estou Contando o
que tenho observado. Por isso é que se deve ter cuidado quando se desposa uma viúva.
Aliás, a história que lhe relatei tem sua comprovação no seguinte fato:
Na manhã seguinte a essa noite
extraordinária, Catarina Fontaine foi encontrada morta em seu quarto. E o padre
de Santa Eulália encontrou, na salva de cobre que servia para o peditório, um
anel de ouro, com duas mãos entrelaçadas. Aliás, não sou homem que conte histórias
para fazer rir. E se pedíssemos outra garrafa de vinho?
***
Sobre o autor:
Escritor francês premiado pela
Academia Francesa, Jacques Anatole François Thibault assinava com o pseudônimo
Anatole France. Nasceu em Paris, no dia 16 de abril de 1844. Faleceu na cidade
de Saint-Cur-sur-Loire, em 12 de outubro de 1924.1920. Recebeu o Prêmio Nobel
de Literatura pelo conjunto de sua obra. Em 1922, teve uma de suas obras
incluídas no “Index”, ao questionar a sociedade e a igreja. Depois de sua
morte, todas as suas obras foram relançadas em 25 volumes, entre 1925 e 1935.