O romance Ensaio sobre a
cegueira, de José Saramago, narra uma inexplicável "cegueira-branca",
um "mar de leite" que atinge a população de local indefinido e provoca,
aos poucos, o caos. Não se trata, exatamente, de uma história, mas de uma
reflexão a respeito do que realmente somos, em essência, e não do que pensamos
que somos - e isso inclui um nome e um endereço, espécie de rótulos com os
quais nos reconhecemos e somos reconhecidos. No mundo da cegueira coletiva,
esses rótulos são irrelevantes. Os "novos cegos" são levados, por
determinação do governo, para um antigo manicômio, sendo assim isolados dos
demais habitantes. Nesse espaço "carcerário", passam por muitas
dificuldades, entre elas a fome, a falta de remédios e de higiene e a
angustiante impossibilidade de comunicação com o mundo exterior.
No horizonte grego, a cegueira
também estava associada à clarividência. Por exemplo, o adivinho Tiresias em
Édipo Rei de Sófocles. Ele é o único que vê as linhas invisíveis do destino de
Édipo. Ao ignorar o significado dos seus atos, Édipo não consegue enxergar os
rastros da profecia que o persegue, e quando consegue enxergá-los, não os
entende. Daí a forte imagem final, quando fura seus olhos, pois só assim, na
mesma condição deficiente do adivinho, pode ver o seu destino. Ver e entender
são sinônimos. Saramago não perde de vista essa conotação na epígrafe: “Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara”.
O enredo apresenta-se como pano
de fundo para expor o ser humano e seus sentimentos mais recônditos: medo,
angústia e vingança. O tom reflexivo acentua as características de parábola
pretendida por Saramago – sobre quem os homens são verdadeiramente quando
julgam que suas ações não podem ser testemunhadas, e sobre como às vezes é
preciso cegar-se para os códigos de sexo, idade e classe para enxergar quem são
as pessoas com quem de fato é possível conviver.