Está chovendo desde o começo da
tarde, ainda sonolenta, vou de encontro a janela; por alguns instantes fico
observando as pessoas passando pela rua, todas com guarda-chuvas e bem
agasalhadas, reparo alguns poucos carros que passam espirrando água do asfalto
molhando turistas no ponto de ônibus. É primeiro dia de Páscoa, aqui, só eu
envolta com meus pensamentos, ainda com trajes de dormir. Ao longe, ouço
atentamente uma longa série de melodias executadas com precisão por uma
orquestra do café situado do outro lado da rua. Está um tanto escuro e frio no
quarto; acendo a luz me certificando das cobertas sobre minha cama. Minha
estimada insônia ainda não cedeu sua trégua, por isso vago pelos corredores
dessa instituição. Passo despercebida; ao lado da enfermaria sem me deter nos
demais quartos, me certifico se todos os pacientes estão dormindo. Prossigo em
frente sem dar muita importância para as pessoas, que ainda perturbadas,
dopadas em meio ao tempo, optaram descansar nos empoeirados bancos desta
prisão. A ala da terapia ocupacional está vazia; em meio tom improviso
longamente, sem pressa, no piano do salão central, serenas melodias, doces e
sutilmente melancólicas, que compensam minha divina solidão. É incrível como a
música tornara-se tão presente em minha vida, chegando as vezes ser meu único
conforto. Tudo estrategicamente perfeito, um clima um tanto propício para uma
seção nostálgica; e de fato tenho que confessar ser essa uma bela ocasião para
uma breve reflexão do passado. Sinto que as vezes pensamentos adentram em mim,
despertando cálidas feridas e saudosos momentos em meu espírito. Minha memória
não foi totalmente debilitada, por isso, conservo boas lembranças de minha
infância, possivelmente as melhores em minha pérfida existência.
Sempre fui uma criança prodígio;
fui educada em Naumburg com meu irmão mais novo, num meio intelectual, uma
dieta rica de alimento mental e inspiração moral. Lembro que ao contrário das
outras meninas da minha idade, eu tinha o costume de acordar geralmente antes
dos meus pais, seguia até o quarto deles e por alguns minutos os observava
dormindo. Meu pai por sua vez regularmente acordava antes da minha mãe, era
incrível, ele podia dormir a hora que fosse, ainda assim despertava cedinho.
Havia em nosso lar uma importância exagerada atribuída ao lado religioso; mesmo
não acreditando, me agradava muito as formalidades cerimoniosas, e a constante
prática de orações desde o café da manhã até a hora de se deitar.
Dos muitos livros que ainda hoje preenchem minha biblioteca,
a grande maioria, herdei do meu pai; grandes gênios da literatura e filosofia
eu tive contato através dele. Delicado e simetricamente cultivado, rigidamente
ele fez seus estudos em Pforta, depois em bona e em Leipzig. Tenho que
confessar que demorei, um certo, tempo para poder apreciar a grandeza artística
contida nos livros. Inúmeros gênios facilmente eram encontrados no seu imenso
acervo, de Honoré de Balzac, literário francês a Nietzsche grande vulto da
filosofia alemã. Também posso citar autores que durante toda a vida buscaram de
maneira incansável o esclarecimento espiritual e secular, tais como: Platão,
São Paulo e o Pai da Psicanálise, Sigmund Freud. Outros poetas e grandiosos
pensadores como Arthur Rimbaud e Paul Valéry, ambos franceses- meus prediletos-
o inglês Walter Pater e Camões que souberam expressar uma sensibilidade humana,
como poucos, davam um ar sagrado em seu sublime escritório. Enfim, a biblioteca
do meu pai era uma fonte inesgotável de sabedoria dos mais diversos gêneros
literários.
Nunca me faltou nada, felizmente meus pais gozavam de uma
razoável condição social; se bem lembro não precisaram de esforços para
alcançarem seu invejável patrimônio, herdaram toda riqueza dos meus avós, donos
de várias empresas de advocacia. Meu avô, velho burguês, era sinônimo de
elegância no auge dos seus 72 anos; foi com muito esforço e árdua persistência
que ele conseguiu alcançar e manter sua fortuna pessoal estimada em bilhões de
dólares. Teria muito orgulho dele se não fosse a maneira machista – antiquária
como tratava sua esposa, Sr.ª Salomé, madrasta do meu pai. Se eu pudesse voltar
atrás certamente teria passado mais tempo com ela, que assim como poucos do meu
circulo familiar era uma pessoa adorável. Das casas que morei tenho poucas
recordações, pois minha mãe ostentava o luxo de não permanecer muito tempo em
um bairro ou cidade. Em consequência disso tive poucos amigos. Na ilha de
Manhattan as ruas eram elegantes, os nova-iorquinos viviam em boas condições;
belos museus e teatros, a presença de turistas fazia parte do cotidiano deste
lugar. Ainda me recordo do peculiar trem no metrô dessa cidade, levava apenas
alguns minutos para percorrer o trajeto do centro de Manhattan até meu bairro que,
alias não lembro como se chamava, afinal naquela época meu pensamento não
estava plenamente maduro.
Apesar da distância que hoje tenho do meu pai, um fato
alcançado devido às exaustivas discussões, deixo as boas lembranças, ainda que
raras, ofuscarem qualquer que seja a mágoa. Como posso deixar de lado alguém
que foi tão especial em minha vida? Tão relevante na minha formação. Ainda
lembro das noites em que ele convidava alguns amigos para aprofunda-se por
horas e horas em suas conversas intelectuais que abrangia desde temas
literários até memorias e questões políticas e sociais. Meu pai era de opiniões
rústicas inflado de severa disciplina, mas, sei que me amava da forma dele,
contundente, em silêncio ou em palavras ásperas. Com o passar dos anos cheguei
a conclusão que as boas lembranças não se dissipam nem envelhecem, pelo
contrário, ganham vida e no decorrer do tempo adquirem luz própria, trazendo
calma, paz e uma íntima serenidade nessa ferida que é o existir.
Mas lembranças são só lembranças, não tem substancia, nem justificam o que vivo quase de maneira indizível o presente, como cheguei aqui? Não sei ao certo, nem quando, nem ao menos o motivo; creio que nesse momento a pergunta mais especifica seria outra: será que um dia encontrarei o caminho de volta? Ou melhor, existiria um caminho de volta? Lástima infiel, milhares de dúvidas estão constantemente invadindo minha cabeça. Elas me pesam me castigando com toda ipseidade. Tenho um olhar distante, vazio, que às vezes expressa serenidade ou delirante apatia. Existe em mim várias almas, uma multiplicidade de sentimentos; por esse motivo sofro mais que o suportável. Gosto de pensar o mundo como uma incrível mágica, a mais fascinante de todas, estou sempre tentando descobrir seus segredos, mesmo desconhecendo seu autor. Porém, tenho medo de me sufocar nas verdades que ele tanto oculta. Devo acreditar em verdade? E se for o caso de existir uma? Que sirva de fundamento para tudo que existe? Mesmo assim não acreditaria que a mesma permaneça desejável depois de lhe temos tirado seu véu; depois de destruímos sua mascara e, olha que não são poucas. Difícil definir com clareza o sentimento que nos toma feito assalto quando vivenciamos o novo, aquilo que assusta por ser estranho. Seria esse o motivo da minha estadia nesse cemitério anacrônico? O que pensar da vida nesse momento? Uma lúdica tragédia que definha meu ser a cada nascer do sol? Paciência, foi o que me disseram, a primeira vez é sempre assim, geralmente esperamos tanto da vida, e a mesma gloriosa em seu encanto e mistério, sempre nos presenteia com suas possibilidades, um universo de possibilidades, uma gama de paradigmas em forma de esperança, sim, uma infinidade de possibilidades que ainda não vingaram: a possibilidade de uma bela família, uma boa casa de campo, lindos filhos, a possibilidade de uma boa vizinhança, o reconhecimento de um bom emprego, amigos, uma boa festa, um bom final de semana, um agradável jogo de futebol, uma bela pessoa que passa, por acaso ao nosso lado, uma boa refeição, um ótimo livro, uma agradável conversa, um inverno nostálgico, um exuberante jardim que transborde vida, uma desejável companhia, um merecido conforto, uma bela poesia, uma majestosa pintura, uma saudável caminhada, uma boa noite de sono, ou até mesmo um alívio após um cigarro. Enfim, nossa existência tem fome de ser e existir mergulhada em possibilidades.
Mas lembranças são só lembranças, não tem substancia, nem justificam o que vivo quase de maneira indizível o presente, como cheguei aqui? Não sei ao certo, nem quando, nem ao menos o motivo; creio que nesse momento a pergunta mais especifica seria outra: será que um dia encontrarei o caminho de volta? Ou melhor, existiria um caminho de volta? Lástima infiel, milhares de dúvidas estão constantemente invadindo minha cabeça. Elas me pesam me castigando com toda ipseidade. Tenho um olhar distante, vazio, que às vezes expressa serenidade ou delirante apatia. Existe em mim várias almas, uma multiplicidade de sentimentos; por esse motivo sofro mais que o suportável. Gosto de pensar o mundo como uma incrível mágica, a mais fascinante de todas, estou sempre tentando descobrir seus segredos, mesmo desconhecendo seu autor. Porém, tenho medo de me sufocar nas verdades que ele tanto oculta. Devo acreditar em verdade? E se for o caso de existir uma? Que sirva de fundamento para tudo que existe? Mesmo assim não acreditaria que a mesma permaneça desejável depois de lhe temos tirado seu véu; depois de destruímos sua mascara e, olha que não são poucas. Difícil definir com clareza o sentimento que nos toma feito assalto quando vivenciamos o novo, aquilo que assusta por ser estranho. Seria esse o motivo da minha estadia nesse cemitério anacrônico? O que pensar da vida nesse momento? Uma lúdica tragédia que definha meu ser a cada nascer do sol? Paciência, foi o que me disseram, a primeira vez é sempre assim, geralmente esperamos tanto da vida, e a mesma gloriosa em seu encanto e mistério, sempre nos presenteia com suas possibilidades, um universo de possibilidades, uma gama de paradigmas em forma de esperança, sim, uma infinidade de possibilidades que ainda não vingaram: a possibilidade de uma bela família, uma boa casa de campo, lindos filhos, a possibilidade de uma boa vizinhança, o reconhecimento de um bom emprego, amigos, uma boa festa, um bom final de semana, um agradável jogo de futebol, uma bela pessoa que passa, por acaso ao nosso lado, uma boa refeição, um ótimo livro, uma agradável conversa, um inverno nostálgico, um exuberante jardim que transborde vida, uma desejável companhia, um merecido conforto, uma bela poesia, uma majestosa pintura, uma saudável caminhada, uma boa noite de sono, ou até mesmo um alívio após um cigarro. Enfim, nossa existência tem fome de ser e existir mergulhada em possibilidades.
Porém, uma pergunta não para de palpitar em minha alma: e
quando tudo perde sentido? Quando tudo para? Onde assentar nossa alma? Como
encontramos conforto após uma lágrima? Onde refrigera nosso querer? Em qual
instante deixamos de ser? Talvez, sei lá, quando não há perspectivas. Quando
tudo brutalmente é esgotado; exatamente ao vazar da vida todo o seu perfume,
todas suas possibilidades, todo seu sentido, nessa hora deixamos de ser e
nossas escolhas vivem de fantasmas, envelhecemos nosso espírito, vagamos pelo
vale do esquecimento. Saímos de um labirinto para findar em uma rústica
caverna. Um quarto, um asilo, último abrigo, um mundo pessoal. Um lugar onde os
instantes são eternos, as horas rastejam, e ninguém pode ver seu corpo definhar
vagando sem rumo feito um ser das trevas.
Demônios - para isso estou aqui. Pois é, eles existem e
estão condenados a vaguear em nosso mundo. O mais irônico disso tudo é que um
deles veio passar as férias nesse asilo. Resultado? Ruídos inexplicáveis, luzes que se acendem e
apagam sozinhas, baixa de temperaturas repentinas, objetos que movem-se
sozinhos, sombras dançando pela asilo, vozes ou lamurias que não sabemos de
onde vêm…Quando aqui cheguei acontecimentos bizarros e, muitas vezes violentos
começaram a ocorrer com uma certa regularidade. É o que eu denomino de “arruaça
paranormal”. Mas, qual o sentido de tanta arruaça paranormal? Será algum tipo
de desabafo por estarem condenados a vaguear sobre a Terra? Vingança? Algum
tipo de ressentimento pelo destino inevitável ao inferno? Faz sentido- Pelo que
sei o inferno não é um lugar com boa vizinhança. Sobre o inferno C. S. Lewis
uma vez escreveu: "Não há nenhuma doutrina que eu removeria de mais bom
grado do cristianismo do que isto, se eu tivesse o poder. Mas essa doutrina tem
o pleno apoio das Escrituras, e sobretudo das próprias palavras do nosso
Senhor." Segundo o poeta Dante Alighieri na depressão, que se abisma em
nove círculos concêntricos, podemos encontrar o inferno. Um lugar onde os
condenados estão disseminados. Entre o
mundo da matéria e o da imaterialidade. Não apenas em suas palavras, mas desde
muito tempo, atravessando as eras mitológicas, nos chega a ideia de tal lugar -
uma região subterrânea onde padecem as almas daqueles que não tinham praticado
o bem em suas existências terrenas. Segundo as lendas as almas imundas estariam
condenadas a ficarem prisioneiras, eternamente sofrendo suplícios e dores
terríveis naquele chamado Hades pelos gregos e Inferno pelos católicos e pelos
protestantes. Certamente um lugar que ninguém deseja ir. Houve quem defendesse
que a permanência da alma no inferno era temporária- algum tipo de hotel de
quinta categoria- que segundo os Evangelhos, a pobre alma poderia sair em um
processo de ressurreição. Enfim, espero que esse asilo não se transforme na
casa da abadia inglesa de Borley, século XX. Para muitos o lugar mais
assombrado da Inglaterra, conhecida pela sua música medonha que se ouvia entre
as suas paredes e pelo monge que caminhava pelo átrio. Uma história e tanto.
Espero que o rumo desse lugar seja mais louvável tipo pacientes repousando sem
o incômodo de alguma “entidade desocupada” . Geralmente clínicas carregam energias pesadas. Qualquer um pode sentir isso.
A pessoas aqui tentam fingir- Nisso elas são boas. Mas comigo a coisas
são diferentes. Não estou aqui para isso: retratar absurdos bizarros. Tenho um dom – mandar entidades vagabundas
para seu lugarzinho no inferno. O curioso disso tudo é que eu posso tanto ser
uma pessoa normal escondendo um monstro
desagradável em meu ser, quanto posso ser um neurótica bem vestida em uma
camisa de força . Tudo faz parte de um jogo. De quando em quando sentindo os
estertores da morte em minha garganta, como um mal está depois de um vômito
interminável. A vida não me jogou aqui de paraquedas, fraca, solitária, sem
horizonte. Foi exatamente esse o lugar
escolhido por Mawilda e seu irmão para meu primeiro trabalho. Durante anos de
teoria estava mais que na hora da prática.
04:30 da manhã, bem agasalhada, dou início um passeio pela
aleia junto ao muro da enfermaria. Um sol meio toldado me esquenta e reflete
nas janelas intensificando as esculturas do jardim. Pássaros cantam e embelezam
a vista. Deixando a sala de visita atravesso um pequeno jardim, tão belo, por
causa da estação de ano, todas a flores já estavam encantadoras. Tudo tão belo!
Estou cansada...Ainda tenho algumas horas para dormir. Mais tarde quem sabe
encontrar minhas “crianças imaginarias” e mandar um demônio de volta para o
inferno.
- Já mandou alguém para o inferno? Essa pergunta não me saia
da cabeça. Parecia impregnada em meu juízo. Ainda tenho dúvidas, tenho minhas
dúvidas. Lanço uma olhadela pelos arredores da clínica e em seguida contemplo
um leve nevoeiro com visível ar de satisfação. Ao fundo ouço conversas rotineiras entre funcionários e pacientes e
quando abro os olhos por um instante, ao longe pela lateral mawilda, segurando
a mão do seu irmão, acenava para mim. Meus garotos. O que seria dessa frágil
garota sem vocês? Quando aqui cheguei desorientada apenas com cinzas em meu
coração aprendi como posso ser uma outra pessoa levando para aos meus
desafetos o fogo dos meus olhos. Algo me
diz, que esta noite terei uma conversinha com um certo demônio.
Por Claudio
Castoriadis
Claudio Castoriadis |