domingo, 26 de agosto de 2012
Dionísio despedaçado
Em um simplório
vilarejo de Roecken (saxônia) nas redondezas de Leipzig, aldeiazinha da
Prússia, a 15 de outubro de 1844, nasce Friedrich Wilhelm Nietzsche. Filho de
Karl Ludwig Nietzsche e de Franziska Oehler - ele traz os prenomes do rei da
Prússia-, sendo descendente direto, de ambos os lados da família, de uma longa
série de teólogos e pastores luteranos. Nietzsche foi educado em Naumburg, num
meio feminino, sob os cuidados da mãe, ele era uma criança prodígio; suas
dissertações e ensaios de composições musicais esboçam desde cedo uma criança
precisamente brilhante e prodígio. No período de onze anos foi professor de
grego latim na então cultuada universidade da Basiléia, na suíça. De imediato
sua estada nessa cidade foi tranqüila onde nos primeiros anos dava regulamente
cursos, palestras e dedicava-se seriamente a escrita. Entretanto, vale
ressaltar que, nem a filologia nem o ensino proporcionavam-lhe alegria; ainda
assim, tal época foi ponto determinante em sua carreira, afinal, descobriu
Schopenhauer e, foi ingresso no circulo familiar de Wagner1,
referências intelectuais com quem havia entrado em contato ainda quando
estudava em Leipzig. Embora perenemente frágil Nietzsche ficou conhecido por
suas peregrinações e viagens, sempre em busca de lugares favoráveis para
expressar suas ideias que culminavam em seu espírito. Em meio a crises, onde
muitas vezes, não podia ler e escrever confessava ser seu pensamento derradeiro
e único consolo. De estação em estação, habituado à pérfida condição de
pensador solitário errante, Nietzsche Viveu quase sempre em miseráveis moradias
tencionando organizar uma existência tranqüila em sua conturbada e melancólica
vida passando a escolher criteriosamente climas favoráveis para sua saúde e
produção intelectual. Com isso, em meio a suas constantes e longas andanças
ocorre um dos momentos mais memoráveis não só para Nietzsche como também para
filosofia, em meados de agosto de 1881, o deslumbramento do eterno retorno
atravessou-lhe o espírito. Uma experiência singular vivida durante uma de suas
caminhadas costumeiras a margem do lago de Silva plana em Sils-Maria. Tomado
pela euforia dessa visão Nietzsche tratou de conservar tal pensamento no mais
recôndito de seu coração. Mas, logo em seguida contemplara seus leitores com a
riqueza dessa doutrina nas cultuadas páginas de um de seus mais belos livros: A
Gaia Ciência.
Sua
influência pesou nas mais diversas escolas filosóficas ao longo do século XX,
amado por muitos e desprezado por outros, Nietzsche se tornou um fenômeno sem
paralelos na história da filosofia. A característica principal do “evento
Nietzsche” sem sombra de dúvidas foi sua afinidade com a figura de Dionísio2
que no pensamento esotérico dos dionisíacos é puro ato presente em toda parte,
eternamente anelante da potência. Símbolo de todas as forças da natureza,
Dionísio deus da terra, um ser vivo que engloba o homem e lhe da o verdadeiro
sentido da existência. De fato, o estupor causado por essa encarnação divina
encontrou em Nietzsche um fiel seguidor que habitou no beço do drama, vivendo,
em carne e osso: a dissolução trazida pelo culto a vida. Com extremo rigor,
Nietzsche não apenas sentiu como também viveu muito da concepção dionisíaca,
marcando-a com precisos traços de sua psicologia pessoal. De certo modo sua
genialidade foi singular por se aproveitar de tal simbólica para servir de
símbolo acreditando ser mesmo um nobre solitário, reflexo humano de Dionísio.
Sempre solitário, vivendo sua agonizante solidão como seu último recurso,
agraciado por ter um espírito cheio de amor e sabedoria e, constantemente
torturado por não encontrar receptáculo. Certamente por não encontrar quem
quisesse seu saber, em Nietzsche tudo era melancolia, angústia e fúria, constantemente
pairando em um universo perturbado por dolorosas experiências e desilusões, sem
ajuda, sem princípios, sem esperança, sem pátria, sem uma única lembrança
amiga. Porém, sua exuberante solidão encontrava-se cheia de luz servindo de
consolo para um Nietzsche disperso, um Dionísio despedaçado. Por ser um
incansável emissário do instinto dionisíaco, amante da alegria dionisíaca da
vida, poeta e filósofo irrevogavelmente contundente; encontra-se latente em sua
vida e obras ditirambos dramáticos - uma filosofia caracterizada por dar
primazia a vontade e ao inconsciente.
*
* *
Apontando
de imediato as diferenciações morais de valor em seu pensamento, Nietzsche deu
início ao chamado “procedimento genealógico” determinado na explicação da
dualidade ética pondo em relevo dois tipos psicológicos - nobres e ressentidos
-. Por esse motivo compreendemos em sua filosofia uma preocupação pela
dissecação dos valores morais tencionando explicações exaustivas e plausíveis
denunciando possíveis atitudes e virtudes qualitativas originadas de uma classe
nobre, formada em sua totalidade pelos indivíduos de uma possível espécie dominante,
e uma classe de escravos onde se encontra atrelada os dominados e dependentes
em qualquer sentido. Vale ressaltar, que, poucos filósofos estudaram tão
profundamente a conduta humana. Foi um psicólogo extraordinário, revelou para o
mundo todo o horror, frieza e beleza existente nos valores morais. Viu na moral
nada mais que a personificação da decadência, que segundo o psicólogo Nietzsche,
seria sintoma do ressentimento humano, a degenerescência da filosofia. Em fim,
formas acusatórias do pensamento e da vida. “Martelo e transmutação”, eis a
fórmula de sua filosofia, exuberante e radical, que discorre sobre o “Amor
fati”, fórmula para a grandeza do homem. Nessa mesma esteira Nietzsche ainda
pode ser visto como um dos mediadores da corrente filosófica dedicada na luta
pela afirmação das identidades locais. Trouxe para si a responsabilidade de
conservar os verdadeiros valores que floresce da sensibilidade nobre.
Anti-revanchistas, Antifílisteus, antialemães, pregava no decorrer de toda sua
obra: a inevitável ligação entre destruição, a necessidade do trágico, do poder
sem limites e sem piedade suscitados pela vontade de domínio - impulso
fundamental que nada tem de causação racional.
Virtude
própria ao gênio enaltecedor da vida, Nietzsche tem sido interpretado de
inúmeras e diferentes maneiras; não existe um consenso definitivo por parte de
seus intérpretes. Sem nunca ser completamente decifrado, a beleza e rigor das
imagens poéticas de sua filosofia esboça um pensamento sempre aberto, ousado e
contundente. Um dos primeiros a desenvolver um trabalho de conjunto sobre seu
pensamento foi Charles Andler. Este, com determinação lançou entre 1920 e 1931,
seis volumes onde traçava as influências que pesou sobre a filosofia de
Nietzsche buscando reintroduzi-lo na tradição cultural; dedicou o primeiro dos
seis volumes a seus precursores e aqueles que julgou mais lhe haverem
impressionado: Goethe, Schiller, Holderlin, Kleist, Fichte, Schopenhauer,
Montaigne, Pascal, La Rochefoucauld, Fontenelle, Chamfort, Estendhal,
Burckhardt e Emerson. E, com o mesmo entusiasmo, Andler examinou a influência
que os moralistas franceses, exerceram sobre Nietzsche, influência constatada
antes mesmo de sua estádia como professor na universidade de Basiléia. Com toda
competência, Andler também se propôs em traduzir wir philologen, titulo
de um ensaio que Nietzsche não chegou a completar, por “Nós, Humanistas”.
Logo em seguida vieram trabalhos que também
contribuíram com resultados significativos para um razoável conhecimento dos
seus manuscritos; Karl Jaspers merece ser lembrado por ter escrito em 1936 uma
rigorosa pesquisa sobre a vida e obra do autor de aurora e, vinte anos depois,
Walter Kalfmann se ateve em uma importante análise da teoria da vontade de
potência. Bem antes desses até agora citados, André Gide, nas Lettres á
Angéle, defende com competência a obra do mestre. Diz que: para uma
plausível compreensão de Nietzsche, acima de tudo é preciso amá-lo, e unicamente
o podem amar os cérebros aparelhados. E, prossegue com seus rasgados elogios
para o autor de Zaratustra reclamando que não o entenderam os que o
consideraram um demolidor, quando ele constrói e constrói sempre, e, quando
destrói o faz nobremente, gloriosamente, com a fúria de um jovem conquistador
que aniquila as coisas corroídas do passado. E ainda: “é a partir dele que foi
possível a criação e que a obra de arte pôde existir”. Com semelhante paixão
Daniel Halévy lançou uma biografia do poeta e filósofo, logo depois traduzida
para inglês, onde descreve um Nietzsche compassivo, exposto a vulgaridade da
sociedade do seu tempo. Heiriche Mann, Paul bourget, Albert Camos, Stefan
zweig, Lébrun, Muller-lauter e Peter Sloterdijk entre tantos outros em nossos
dias, escreveram competentes ensaios sobre sua obra, divulgando sua espantosa
variedade de aspectos. Enfim, dentre tantos pontos de vista, os devidos méritos
sejam atribuídos também para as brilhantes perspectivas que ainda reluzem como
pesquisa fundamental do seu legado; são as avaliações de Heidegger, Foucault e
Gilles Deleuze, esses dois últimos em especial por darem em meados da década de
1980, novas vertentes interpretativas aos leitores do Brasil. Como bem lembra
Scarlett Marton3.
*
* *
Lembremos
também sua importante contribuição para filosofia contemporânea quando,
interioriza a problemática acerca da metafísica ocidental tradicional, que,
antes por excelência inclinava-se em manter uma posição exclusivamente
transcendental. Claro que, questionamentos acerca da possibilidade metafísica
não é característica exclusiva de Nietzsche. São notórias objeções à metafísica
na filosofia de Hume e Kant e muitos outros filósofos. Porém, é pela sua
radicalização da metafísica que Nietzsche se difere dos demais críticos quando
com destreza desconcerta as dicotomias metafísicas. Por esse motivo é visível
no contexto de suas considerações uma forte preocupação em manter uma postura
desprovida de intenções metafísicas. “O filosofar de Nietzsche exclui, como
pergunta relevante para o acontecer efetivo, a pergunta pelo fundamento do
ente, no sentido da metafísica tradicional” defende Wolfgang Muller-Lauter
em seu importante ensaio a doutrina da vontade de poder em Nietzsche.
Elegantemente
o nobre mestre dionisíaco convida seus leitores para uma leitura compromissada
e intensiva de seus escritos, leitores com coragem e sensibilidade para
respirar o ar que norteia toda a atmosfera do seu discurso. Poesia e
genialidade inclinada para espíritos-livres, estes, com “profundidade”, com
“prudência e precaução”, com “segundas intenções”, “portas abertas”, com “dedos
e olhos delicados”. E para aqueles desavisados, aventureiros embriagados pelos
ditirambos e audazes críticas estas, tragicamente convertidas em “lamentações dionisíacas”,
o próprio Nietzsche, em um tom “provocante” que lhe é peculiar alerta:
“aprendam a me ler bem”. Ao mesmo tempo em que desafia seus leitores e
críticos: “quem, pois, teria a coragem de lançar um olhar no inferno das
angústias morais”. Enfim, seus textos são inclinados para leitores audazes e
filólogos perfeitos; -“Filólogo” nesse contexto remete especificamente aquele
leitor que domina a arte de ler bem, com rigor, precisão e paciência-.
Seu
estilo irreverente, poeticamente ousado devido seu espírito vigoroso, nos
presenteia com concepções, ora de modo velado e alusivo, ora límpido por meio
de aforismos sem atenuar a complexidade de seus manuscritos. Características
estas entre tantas outras que, asseguraram o encanto peculiar que emana da
multiplicidade das perspectivas adquiridas mediante reflexões minuciosas de
vários pontos de vista da sua obra. Sempre conduzindo suas críticas com ironia
e sarcasmo, Nietzsche marcou seu estilo com uma força especial de persuasão
aderindo o hábito filosófico de provocar seus desafetos. Das suas tantas
provocações, a recusa de instaurar um sistema merece ser lembrada. Afinal,
pensar Nietzsche como sistemático é tão absurdo como enclausurar um “abismo” em
um frágil recipiente; nada mais avesso à grandeza do seu pensamento do que
limitar o encanto dos seus escritos em um campo monolítico - a sensibilidade de
sua filosofia não se limita em uma postura estática. Ao contrário, se expande
esnobando uma reflexão definitiva. Nietzsche se ateve nessa postura não apenas
por querer evitar uma unidade metodológica, mas, principalmente receoso pela
dogmática instaurada á margem de um sistema.
A
repercussão do seu pensamento se fez visível não apenas na filosofia, sua
influência discorre também na política, na psicanálise, nas artes, na
literatura e até mesmo na música. Richard Strauss, por exemplo, escreveu um
poema sinfônico a partir de um de seus livros; música esta utilizada por
Stanley Kubrick na abertura de 2001, uma odisséia no espaço. Porém, um
dos pontos negativos de tanta exposição do seu pensamento foram as apropriações
indevidas de sua filosofia. Das diversas apropriações ideológicas que
contribuíram para as deturpações, e, falsificações da sua filosofia; lembremos
da “monstruosa” e “desqualificada” atitude equivocada da sua irmã Elizabeth
Förster Nietzsche, nacionalista alemã fanática que após o grande feito de
organizar o Nietzsche-Archiv, em Weimar, Erroneamente apresenta “vontade de
potência” para o mundo como síntese do pensamento Nietzschiano; uma “suposta”
obra principal de Nietzsche a serviço dos ideais chauvinistas - nazismo. De
fato, existiu a intenção pela parte do filósofo de um projeto literário
intitulado vontade de potência. Infelizmente o resultado findou sendo uma
coletânea póstuma de fragmentos intitulada a partir de um conceito que
permaneceu inacabado no pensamento do filósofo por ocasião da crise de Turim. E,
por ser esse termo apresentado de forma tão fragmentária, uma nuvem negra de
interpretações pairou sobre sua obra; dando margem as mais virulentas
interpretações. A esse propósito, comenta Mazzino Montinari: “assim terminam,
na vigília do próprio fim de Nietzsche, as vicissitudes do projeto literário da
vontade de potência”. Felizmente, na
medida em que traduções e estudos rigorosos a cerca dessa intrigante
problemática se estendiam, várias teorias foram se desmoronando devido à falta
de argumentos consistentes - no tocante à utilização indevida que fascistas e
nazistas fizeram da filosofia de Nietzsche, intelectuais do porte de Jean-wahl,
klossowski se encarregaram em desmascarar as gritantes apropriações.
*
* *
Em
meio a tantas opiniões, algumas a seu favor e, tantas outras contra, umas
incentivando a pensar com ele reconhecendo os limites e a grandeza da sua
filosofia, muitas outras advertindo por diferentes perspectivas os custos
negativos de sua obra; compreendemos que, de diferentes maneiras não são os
poucos que permanecem na mesma questão, realçando o mal estar que ainda hoje
lhes provocam os manuscritos do filosofo; investigando até que ponto sua
filosofia é contraditória ou não, problematizando um autor conflituoso, tanto
em suas obras publicadas como nas póstumas. Mas afinal, tendo como pano de
fundo um principio metodológico, como devemos proceder perante sua
filosofia? Como ficou constatado, desde
sua crise em Turim, não só sua filosofia, mas, sua biografia e estilo ficaram a
mercê das mais diversas interpretações. Ora, ouve momentos que o redator de
Zaratustra chegou a ser interpretado como um “anarquista intelectual” - fato
este ocorrido na Espanha no início do século; assim como também fora defendido
como pensador de direita na França e, logo adiante paradoxalmente sua filosofia
serviu como pano de fundo para a extrema esquerda francesa. Todavia, não
importa o contexto nem a que custo, o que deveras ficou comprovado foi que a
filosofia de Nietzsche não se restringe em nenhum arcabouço político, mesmo que
para muitos seu discurso favoreça a todos. Felizmente interpretações
alimentadas e amparadas por recortes arbitrários ideologizantes perdem sustento
pela superficialidade de seus argumentos.
Pois
bem, sendo seus manuscritos alvo fácil para deturpadores, não seria o caso de
desqualificamos uma obra especifica? Ou não estamos autorizados sobre nenhuma
hipótese desqualificar (o que seria uma atitude precipitada) uma de suas obras,
sem antes analisar a mesma de modo estratégico? Nesse contexto, nada mais justo
do que principiamos uma cautelosa locomoção no círculo da sua interpretação, em
questionar a ordenação sistemática da
mediocridade editorial das possíveis deturpações grosseiras do seu pensamento,
e, principalmente acima de tudo é preciso evitar o contra senso em considerar
os aforismos e fragmentos - estes peças fundamentais para os deturpadores-
publicados após sua morte desqualificados por serem póstumos. É importante
ainda lembrar que houve trabalhos sérios dirigidos com extrema cautela e
maestria que foram de suma importância para o resgate do real sentido dos
manuscritos de Nietzsche que, devido aos recortes arbitrários se encontrava
descaracterizado. Ressaltemos o impecável e ainda em ascensão trabalho de
Giorgio Colli e Mazzino Montinari pondo em público a edição crítica das obras
completas de Nietzsche.
Enfim,
o que podemos constatar a despeito das divergências de perspectivas acerca da
sua doutrina é um espantoso “abismo de suspeitas” entre um Nietzsche idealizado
por sua irmã e um outro “resgatado” a partir das traduções minuciosas coordenadas
nos arquivos Nietzsche em Weimar; e, foi a sombra desse apático “abismo” que
brotaram interpretações de um Nietzsche chauvinista, anarquista, pensador de
direita, porta voz de extrema esquerda, anti-semita, dentre tantas e outras
intrigantes opiniões. Ora, de outro “abismo” bem mais intimidante, este,
tragicamente mais profundo, fonte da angústia dos valores morais, ascende o
vigoroso e inquebrantável “espírito dionisíaco” que vagueia solitário, munido
com sua energia sem discrepância por salas e corredores dos centros acadêmicos
das diversas partes do mundo assombrando a todos em um tom irônico martelando a
nós viventes com a seguinte provocação: “vós não sois águias: por isso não
conhecestes o gozo no assombro do espírito. Quem não é ave não deve fazer seu
ninho sobre abismos”.
Assim falou Zaratustra
Por Claudio Castoriadis
Sobre o Autor:
Claudio Castoriadis |
Assinar:
Postagens (Atom)